Montenegro, o securitário

O primeiro-ministro está a especializar-se em dizer que não faz nem fará nunca o que está, debaixo dos nossos olhos, a fazer. Foi assim com o “não é não” aos acordos com o Chega e é assim com a ligação da imigração à insegurança e com a ideia de Portugal ser um país inseguro.
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O que é um discurso securitário? É, por definição, um discurso que privilegia a segurança face a outros valores - a liberdade individual, a dignidade pessoal, a igualdade. Em termos políticos, é também um discurso que enfatiza a ideia de insegurança, ou seja, de medo, para justificar a necessidade de determinadas medidas e a perseguição de determinadas pessoas ou grupos de pessoas.  

É exatamente isso que faz este governo, dizendo que não. A entrevista de Luís Montenegro ao DN, publicada este domingo, é disso prova. Aliás, Luís Montenegro está a especializar-se em dizer que não faz nem fará nunca algo que está, debaixo dos nossos olhos, claramente a fazer. Foi assim com o “não é não” que nas legislativas proclamou em relação a acordos ou entendimentos com o Chega e é assim com a ligação da imigração à insegurança e com a ideia de Portugal ser um país inseguro. 

Diz que o país é seguro “mas”; sabendo que os números não lhe permitem afirmar que se tem assistido a um aumento da insegurança real - a criminalidade, nomeadamente a violenta, tem, nas últimas décadas, diminuído e muito - fala de “sentimentos” e “perceções” e quando apertado indica “outros países” que “também eram muito seguros” e deixaram de o ser. 

Tal qual, aliás, o modelo: André Ventura, autor de uma tese de doutoramento na qual descrevia criticamente o populismo penal e frisava que Portugal é um dos países mais pacíficos do mundo (em 2013, quando por acaso até era, atendendo às estatísticas criminais, “mais inseguro” que agora), criou em 2019 um partido de discurso securitário para o qual “Portugal sofre de insegurança crónica”. Em entrevista ao DN, em 2019, justificava essa patente contradição com “uma coisa serem os relatórios, nos quais Portugal é um dos países mais pacíficos do mundo, outra coisa é a perceção que eu tenho e que os cidadãos têm.”

Quando um primeiro-ministro justifica operações policiais com “a perceção de insegurança” e acha admissível que em dois meses tenham existido duas de grande envergadura, com ampla cobertura mediática, numa zona que é conotada com a imigração (e que por esse motivo tem sido inclusivamente alvo de ameaças de incursões violentas de grupos de extrema-direita), sabe perfeitamente o que está a fazer.

Quando diz “as pessoas não precisam de ser alvo de crime para se sentirem inseguras, intranquilas. Basta assistirem a crimes que atingem outras pessoas, basta olharem para alguns fenómenos sociais e assustarem-se com eles”, Luís Montenegro evidencia saber que “as pessoas”, vendo na TV dezenas de polícias armados até aos dentes numa zona que é considerada “de imigrantes”, a revistar todos os que estão na rua, vão concluir que quem está ali é visto pelas autoridades como constituindo uma ameaça. 

Não é decerto assim que se induz “um sentimento de segurança”. Não é decerto sucumbindo ao discurso do Chega, ao populismo mais radical, apresentando os imigrantes como inimigos, como alguém que usa ilegitimamente os recursos do Estado social - e portanto é necessário excluir do acesso ao SNS, porque estão “a usar o que é nosso” - que se cria uma perceção de maior segurança e tranquilidade social. 

É, obviamente, o oposto. E obviamente que, não sendo destituído, Luís Montenegro sabe que a PSP nunca poderia fazer o que fez na Rua do Benformoso - mandar parar toda a gente de mãos contra a parede para ser revistada - na Rua Augusta ou na Rua Garrett ou na Avenida de Roma sem ter reações muito diferentes quer das pessoas que seriam sujeitas a essa ação quer do resto do país. Porque ninguém compreenderia essa medida típica de um estado de sítio, e que só é aceite nas sociedades democráticas quando sucede por exemplo um ataque terrorista, sem um motivo muito forte - que não poderia ser decerto “reforçar o sentimento de segurança” da população. 

E não se justifique tal espetáculo - que Montenegro disse não ter gostado de ver “no sentido visual”, quando na verdade o objetivo era mesmo esse, visual - com a possibilidade de “apanhar armas” ou “drogas”.

Se a polícia passasse a vida a fazer rusgas em toda a parte, decerto que acabaria por “apanhar” muita arma, muitas substâncias ilegais, muita gente com mandados de detenção. Se a polícia pudesse entrar em qualquer casa a qualquer hora, sem necessidade de motivo ou de autorização judicial específica, decerto acabaria até por surpreender muitos flagrantes delitos - sobretudo num país no qual um dos crimes mais participados é o de violência doméstica. Aliás, se houvesse câmaras em todas as casas, em todos os edifícios, com ligação direta às autoridades, poder-se-iam - partindo do princípio de que, ao contrário do que sucedeu em Vale de Judeus, alguém estaria a olhar - evitar muitos crimes.  

Poder-se-ia até criar um modelo de inteligência artificial para efetuar grande parte da vigilância - ao contrário dos humanos, a IA não se põe ao telemóvel a ler coisas, não se distrai com vídeos de cãezinhos nem passa pelas brasas. Perfeito, não é? A pessoa estava sempre sob o olho das autoridades - na rua, no escritório, no restaurante, no bar, na sala, no quarto, no duche. E escusado dizer que a possibilidade de a qualquer momento ser mandada parar, interrogada (sobre quem é, o que faz, de onde vem, para onde vai, essas coisas básicas) e sujeita a busca corporal completa deixá-la-ia na mais absoluta tranquilidade.

Melhor: os documentos de identificação deveriam talvez ser insertos no corpo, como os chips dos animais de companhia, e existirem máquinas de deteção em todo o lado para assinalar com estridência, quiçá tasers, quem não tivesse o chip. Apanhavam-se assim todos os “ilegais” e quem os introduz no país, os acoita e os usa como mão de obra. Ficava resolvido.  

Aliás tenho dificuldade em perceber por que motivo, se a ideia é tentar encontrar “ilegais”, combater o tráfico de pessoas e explorações laborais que se assemelham a escravatura, não se fazem rusgas a eito, de norte a sul, nas plantações e estufas, mais fábricas e etc, do país. 

Se quisermos um país de segurança à prova de tudo, é assim simples. Ficaríamos apenas com o problema dos abusos das polícias, que, da violência não justificada à corrupção, como sabemos infelizmente existem. Mas isso resolvia-se substituindo os polícias humanos por polícias andróides programados para cumprir sempre a Constituição. Era preciso era mudar a Constituição para que tudo isto fosse possível, mas também se faz, não é? Tudo se faz, com jeitinho. Ou mesmo sem nenhum.  

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