Misturar galhos com Bugalho

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Não há uma linha que separa o jornalista que produz notícias do jornalista que comenta notícias. Mas defendo que deveria existir. Não por acreditar na possibilidade de neutralidade, e sim por entender que a subjectividade de opiniões e percepções, aliada à disputa de protagonismo que domina o espaço de comentário, tem vindo a contaminar o exercício da profissão.

Observo essa contaminação não apenas como consumidora de informação, mas como alguém que, por quase 20 ano,s esteve integrada em redacções. Vejo como profundamente problemático que um jornalista incumbido de noticiar a actualidade Política, seja ao mesmo tempo criador dessa actualidade, influenciando, com as suas opiniões as leituras que se fazem deste ou daquele acontecimento.

Não será por acaso que a imprensa está sobrecarregada de “casos e casinhos”. Esses não só dispensam aturadas verificações de factos e fontes - o que determina a divulgação é o possível aparato e alcance mediático  -, como alimentam uma displicente indústria da opinião, em que  fulano “diz que” , beltrano “já reagiu”, e sicrano “não comenta”.

Entupida de aparecedores e pseudo-influenciadores, a comunicação social segue modelos de negócio cada vez mais esvaziados de jornalistas e de jornalismo.

Abro aqui um parêntesis para defender a importância da análise, que considero fundamental para a digestão informativa de múltiplas complexidades que nos desgovernam. A fronteira está, a meu ver, no conhecimento que, comprovadamente, se tem do tema, algo que não deve ser avaliado pela quantidade de vezes que já se opinou sobre o mesmo, mas antes pela qualidade do trabalho que já se produziu sobre o assunto.

Para que fique mais claro, utilizo exactamente a mesma bitola que, durante a minha vida de jornalista com Carteira Profissional, fui usando para seleccionar as minhas fontes. Numa reportagem sobre depressão pós-parto, por exemplo, em que identifique a necessidade de ouvir uma psicóloga, a minha escolha irá recair sobre uma especialista com experiência nessa área em concreto. Se conseguir encontrar alguém com estudos publicados, melhor ainda, porque essa pessoa poderá trazer dados novos, e oferecer uma perspectiva mais estrutural do problema.

Da mesma forma, um jornalista que se tenha especializado num tema é capaz de, apoiado em factos e fontes, descodificá-lo, facilitando a sua compreensão, e deixando que sejam os leitores, telespectadores ou ouvintes a formar a sua opinião.

Fecho o parêntesis sobre a análise, e regresso à obsessão com o comentário. Tão supervalorizado que aos “fazedores de opinião” juntam-se cada vez mais os “fazedores de realidades”.

Andam pelas televisões, rádios e jornais a vender uma visão de mundo - local, nacional, europeia ou mais global -, para capitalizar votos, negócios, influências. Inventam problemas - como o da insegurança causada pela imigração - para oferecer soluções, e criam contexto para discursos de ódios que apenas deveriam merecer reprovação e repúdio.

Sublinho que estou a falar de jornalistas, não de políticos. E a última campanha eleitoral ofereceu-nos um deplorável festival de tudo isso, protagonizado por jornalistas-comentadores, visivelmente divorciados do dever de informar e comprometidos com agendas políticas.

Há quem normalize a contaminação, defendendo que não é segredo para ninguém que vozes estão ao serviço de quem. Discordo. Além de me parecer evidente que as declarações de interesses não-assumidas, mas subentendidas, apenas são óbvias dentro de algumas bolhas politizadas, interessa-me questionar as suas implicações.

Na última campanha eleitoral para as Legislativas, Sebastião Bugalho, agora apresentado como cabeça-de-lista da AD para as Europeias, foi um dos jornalistas-comentadores mais vocais em defesa da direita. Estaria já em campanha?

Creio que nunca saberemos. Mas salta à vista que é perfeitamente possível a alguém com Carteira Profissional de jornalista - como era até ao início desta semana o caso de Sebastião Bugalho -, usar do seu espaço de influência para promover as virtudes de uma força partidária que, no momento eleitoral seguinte, aceita representar.

Entre a representação do Sebastião jornalista e a apresentação do Sebastião político, passaram cerca de dois meses. Em menos do que isso estaremos a votar para as Europeias e, aí chegados, as televisões portuguesas poder-se-ão gabar não apenas de eleger políticos, mas também jornalistas. Mas isso, ao contrário de Bugalho, segundo Montenegro, parece não ter nada de polémico.


Não escreve ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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