Militar em cargo errado
Muitos anos decorridos após o 25 de Abril, chegados ao fim os míticos Governos de Cavaco Silva, tínhamos, além dum general à frente da GNR, um outro general, garantido por lei, a comandar a PSP. Desde o início da ditadura, eram praticamente 70 anos com a polícia, de forma ininterrupta, colocada sob comando militar.
Era um panorama difícil de encontrar, e até talvez único, em democracias europeias. Nalgumas, em regra do Sul, coexistiam - e ainda coexistem - uma força de segurança militar ou militarizada e uma força de segurança civil, havendo para isso argumentos. Mas só já na América Latina teríamos, por essa altura, soluções legais de atribuição da segurança urbana a comando militar.
Era, pois, em desenho global, uma variante do modelo dual sul-europeu com algum toque latino-americano: duas forças de segurança de natureza e vocação supostamente diversas, mas cada uma delas comandada por um general. E um general no activo, acrescente-se (há pelo menos um caso, nesses anos, em que o Conselho Superior do Exército se pronunciou expressamente, por unanimidade, contra a proposta de um general na reserva).
Não é aqui lugar para discorrer sobre os inconvenientes e as pesadas sequelas de se ter mantido intocada esta solução durante tanto tempo, em particular numa força de segurança que, num dia longínquo, se tinha chamado “polícia civil”. Retenha-se só que, chegada a hora da mudança, houve um curto período em que, por várias razões, tiveram de coexistir, por um lado, um quadro de opções finalmente mais “europeu” (refiro-me ao DL 2-A/96, de 13 de Janeiro e à instituição de um controlo externo da actividade policial, independente dos comandos militares) e, por outro, a responsabilidade cimeira ainda confiada, como vinha detrás, a um general.
Entre os episódios que preencheram essa fase há um que não deve ser esquecido. Pelos finais de 96, uma bala disparada por um agente da PSP atingiu mortalmente um suspeito e quem devia decidir viu motivos, no caso concreto, para ser decretada a prisão preventiva. Essa decisão - de uma juíza do Tribunal de Évora - suscitou, por parte de um certo número de polícias, uma manifestação com contornos intoleravelmente ofensivos para o Tribunal (além de outras reacções, de igual modo censuráveis, como uma anunciada “entrega de armas”). Mas em vez de pronta reprovação e acção disciplinar, essa reacção à decisão judicial teve o Comando Geral do seu lado. Tudo sinais inadequados e inaceitáveis - em particular, como decorrente da Constituição, quando emanados de uma instituição policial dum Estado de Direito democrático.
Com o quadro legal nessa altura já criado, uma nova solução tinha-se tornado, entretanto, exequível: uma opção “que nos aproximava do modelo europeu de serviço público de polícia”, como foi dito. A democracia portuguesa despedia-se - estamos a falar de 6 de Janeiro de 1997- de um anacronismo institucional e legal, “deixando para trás soluções de há muito abandonadas pelos nossos parceiros europeus”.
Dias antes, uma sondagem revelava a preferência ia, sem surpresa, para a colocação dum militar no cargo: não eram contudo sondagens que poderiam tornar certo o que seria errado.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.