"Memórias Minhas"
Ao ler Memórias Minhas de Manuel Alegre senti os ecos da Carta de Francisco Sá de Miranda a el-rei D. João: “Homem dum só parecer / dum só rosto e d’uma fé / d’antes quebrar que volver, / outra cousa pode ser, / de corte homem não é.”
Estamos perante um livro de várias vidas numa só vida, que nos obriga a pensar que a democracia exige uma longa caminhada. As raízes familiares são ricas e múltiplas: “Na minha família há liberais e miguelistas, monárquicos e republicanos, nobres e plebeus, um avô paterno, amigo do rei D. Carlos, a quem nem por isso deixou de vencer várias vezes em torneios de tiro aos pombos, e um avô materno, republicano e carbonário, encarregado de prender o rei D. Manuel II, no Buçaco, numa gorada tentativa revolucionária.” É Portugal todo aqui. E é esse percurso que encontramos com passos refletidos, numa escrita exemplar, do prosador que usa o ritmo poético para iluminar a realidade.
O livro lê-se de um fôlego, mas obriga a ir regressando e rememorando, uma vez que é História real que aqui se conta, até lembrando o velho jardineiro da avó Maria Tereza, que perante nuvens no horizonte, dizia: “O tempo, minha senhora, está a causticar na favorita da Primavera…”
A cada passo encontramos o mesmo inconformismo. Depois da luta estudantil, há um assomo de rebelião, em Ponta Delgada, com António Borges Coutinho e Ernesto Melo Antunes, entre liturgias patrióticas… Envolvendo um aristocrata sergiano, leitor de Antero, e um arguto militar que lia Gramsci, houve até o sonho frustrado de uma revolta. Manuel Alegre escrevia A Praça da Canção… Depois, vem a jornada de África. Luanda, Nambuangongo, Quipedro, Muxima, Sá da Bandeira, Sanza Pombo, Quicua… A experiência angolana da guerra e a prisão pela PIDE contribuíram para uma firme tomada de consciência. Era preciso destruir a sombra sebastianista. Com “orgulho na aventura marítima de Portugal”, Manuel Alegre pensava que era tempo de fazer a viagem do caminho marítimo para a Índia ao contrário. Se houve um tempo para partir, agora era tempo de voltar, para “achar Portugal em Portugal”. Havia que derrubar a ditadura.
Regressado a Coimbra, a PIDE aperta o cerco. Na Praça da República, a caminho do Mandarim, com Adriano Correia de Oliveira, sente a sombra negra da polícia e num ápice nasce o tema da Trova do Vento que Passa: “Mesmo na noite mais triste / em tempo de servidão / há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não.”
Mas o poeta tem de partir, com o apoio de João José Cochofel, tendo como destino imediato a Casa de Vilar, graças à generosidade de Rui Feijó, sob a memória do poeta Álvaro Feijó. “Casa de onde mais não sairei. Mesmo depois de partir, sobretudo depois de partir.” Daí parte clandestinamente e é tocante a descrição desse momento de todos os riscos. Depois, Paris e Argel, a Voz da Liberdade e dez anos a preparar, dia a dia, as emissões, com entusiasmo e sacrifício.
É histórica a entrevista a Amílcar Cabral, onde este afirma: “Não é mentira, não, os portugueses deram de facto novos mundos ao Mundo e aproximaram povos e continentes.” Afinal, o fascismo e o colonialismo é que estavam a desunir o que a História tinha aproximado. São tempos intensos em que se sente o pulsar de uma oposição plena de dúvidas e incertezas. Em Argel, relê a Odisseia e sente-se dentro da errância de Ulisses, no relato de uma viagem de retorno.
Depois da Revolução de Abril, Manuel Alegre traz-nos recordações que emocionam. “A revolução democrática venceu. Nas urnas, nas ruas e na Assembleia Constituinte onde, apesar de todos os confrontos, os deputados foram fazendo o seu trabalho, redigindo uma Constituição que não poderia ser alheia às transformações políticas, sociais, económicas e culturais ocorridas desde o 25 de abril. Várias e até contraditórias conceções de revolução. Mas o essencial está consubstanciado na Constituição”… E é assim que são tecidas Memórias Minhas, com alma, determinação, coragem, sentimento e vontade.