Memórias e silêncios

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Ao longo da vida acumulamos experiências, perceções, conhecimento. Por vezes, a memória prega-nos partidas, atraiçoa-nos. Nomes que se esquecem, acontecimentos cujos contornos se dissipam, datas que se confundem. Como diz Chico Buarque: “Salve o dia azul, salve a festa e salve a floresta, salve a poesia e salve este samba antes que o esquecimento baixe seu manto, seu manto cinzento.”
A vida faz-se de memórias. Umas boas, outras más. A História constrói-se com memórias. Heroicas muitas vezes, mas também as que envergonham. Há memórias que magoam, traumatizam, e tudo fazemos para esquecer. E há outras que esquecemos por irrelevantes.

Outras vezes, optamos por não partilhar as nossas memórias, mantendo-nos em silêncio. Por respeito, por vergonha, por obrigação, por dever profissional, por estratégia. O silêncio é também uma forma de transmitir algo, de marcar uma posição, ou de estimular a curiosidade para o momento em que se fala. A cultura japonesa valoriza o silêncio como forma de demonstrar respeito e cortesia e como forma de transmitir emoções. Uma fonte de intimidade emocional entre as pessoas, em que estar em silêncio tem simbologias próprias, como se fosse um código, que deve ser respeitado.

Mas o silêncio pode ser também uma forma de controlar a memória coletiva, definindo o que deve ou não ser lembrado e transmitido. Dessa forma, o que está autorizado a ser lembrado cristaliza-se, permanece no tempo e dá aos acontecimentos históricos um determinado destino. Destino que poderia ser outro, se o conteúdo das memórias individuais pudesse ser revelado, incorporado na memória coletiva.

O que chamamos de Humanidade é a capacidade de preservar memórias, neste caso coletivas. Se antes era a História o cerne da investigação e do saber científico, agora é a memória que constitui a noção central de uma nova cultura pública. Os discursos pós-coloniais são, na sua essência, a tentativa de correção de certos factos e a reivindicação de novas políticas da memória.

Muito mais do que uma ideia estática de História, as políticas de memória são fundamentais enquanto pilares de uma política de Direitos Humanos. No jogo de luzes e sombras entre a memória e o esquecimento é de extrema importância saber preservar essas memórias, estudá-las e dar-lhes notoriedade. Os projetos TRANSMAT, Memória para Todos e Memórias de Lisboa são bons exemplos.

Assim como a construção, em Mafra, de instalações para o fantástico Arquivo Nacional do Som. 
Ao invés, Lisboa continua sem um novo Arquivo Municipal. O existente encontra-se espalhado há décadas pelo Bairro da Liberdade (edifício principal), pela Rua da Palma (arquivo fotográfico) e por Alcântara (videoteca), em condições que prejudicam quem lá trabalha, dificulta a investigação e não dignifica a capital do país.

Urge, assim, um novo espaço identificado como “arquivo”, mas que seja, na verdade, um lugar multifuncional e aglutinador para o amanhã. Um lugar de vida, de convívio e de partilha, um catalisador cultural proporcionando uma relação dinâmica entre os lisboetas e o seu arquivo. Agora que o presidente da Câmara tem, e bem, o pelouro da Cultura, parecem estar reunidas as condições, como nunca, para concretizar um projeto há muito prometido e sempre adiado.

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