Memórias de Alexandre

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Mulheres nas primeiras filas, homens nas demais, ordenados alfabeticamente, números à vista nos lugares que estivessem vazios …era um dispositivo disciplinar que servia bem um constante controlo de faltas que só cairia uns anos mais tarde, à custa de lutas e expulsões. Este sistema arcaico deu uma boa ajuda a que logo nos primeiros tempos do curso de direito viesse a travar conhecimento com alguns colegas que essa ordem impunha sentarem-se bem perto de mim. E assim conheci de perto, no ano lectivo de 1965/66, dois colegas que iniciavam o curso, como eu, mas o faziam, com mais do dobro da minha idade, por razões e em condições extraordinárias: Alexandre e Amílcar. Nos intervalos, nos corredores, esperando as provas orais, foram-me contando, ao longo do tempo, boa parte das suas histórias, com a prudência e a discrição que nesses tempos negros a experiência ditava.

Amílcar fora oficial do exército, estivera na Índia, participara na revolta da Sé, estivera preso em Elvas, conseguira voltar ao serviço, fora depois para África e as suas posições contra a guerra colonial conduziram-no a um Conselho Superior de Disciplina que o expulsou das Forças Armadas, despojando-o de quaisquer direitos, que recuperaria só depois do 25 de Abril (Amílcar Domingues, 1931-2019). Alexandre era um padre que estudara em Roma, na Universidade Gregoriana, voltara à sua Angola natal e - em alternativa a ser preso, como sucedeu a outros sacerdotes - fora deportado para Lisboa, onde lhe foi fixada "administrativamente" residência, como aconteceu a mais oito padres angolanos, e por aqui viveria uma década sob a ininterrupta vigilância da PIDE.

Tendo vivido o colonialismo na pele e denunciado as injustiças que se abatiam sobre o seu povo, Alexandre era de há muito nacionalista. Para mim, a novidade, no trato pessoal, era ouvi-lo mencionar , de forma constante, "os portugueses", "as autoridades portuguesas", "a verdade dos portugueses", "os crimes dos portugueses"… Ouvi-o referir-se à repressão que se seguira ao 4 de fevereiro em termos que não diferiam dos que verão a luz mais tarde no seu Diário ( "vi matar pretos só por serem pretos") e até com pormenores que, por razões que para aqui não contam, não esqueci mais.

A estadia em Itália, onde estudara teologia e filosofia e fora ordenado padre, tinha-o marcado muito, cultural e politicamente. Falava com apreço das democracias europeias e julgo que foi a primeira pessoa que ouvi elogiar, com convicção e conhecimento, a democracia cristã e os seus vultos. Gramsci ao tempo atraia-me bem mais, mas aprendi com ele. Com uma dedicatória que ao tempo me tocou, Alexandre ofereceu-me, mesmo, um opúsculo de sua autoria ( que hoje não vejo mencionado nas resenhas bibliográficas a que tive acesso) em que dava expressão a essa postura. De Gasperi, antigo resistente e ex-primeiro ministro de Itália, era uma das suas grandes referências.

Quando ainda seu colega, fui candidato pela Oposição Democrática às legislativas de 1969 pelo círculo de Leiria, tendo por programa a célebre plataforma de S. Pedro de Moel, lá aprovada. Numa fórmula muito negociada entre as várias correntes oposicionistas e que representava uma sensível evolução em relação ao passado, preconizava-se a "resolução política e pacífica das guerras do Ultramar, na base do reconhecimento dos direitos dos povos à autodeterminação, precedida de um amplo debate nacional." Acabei por ser impedido de figurar na lista, com recurso a legislação publicada pelo nosso ex-professor de direito constitucional já depois de marcado o acto eleitoral e com a alegação, em nota oficiosa, de que "professava ideias contrárias aos princípios fundamentais da ordem estabelecida" . Desse insólito episódio, e em particular da assunção pública desse compromisso programático, não guardo memória de qualquer reacção positiva que me tenha chegado no ambiente académico da época (o que nalguma parte se explica pela acção da censura e também pelo desdém que a "esquerda estudantil"» dedicava à Oposição Democrática.

Alexandre, sempre bem informado, ficou na minha lembrança como o único colega que fez questão de conferir especial significado a essa tomada de posição (e também, no caso, ao desfecho). Isso saldou-se por uma conversa bem mais longa do que o habitual num dos corredores da Faculdade, de que ainda tenho viva recordação. Só muitos anos mais tarde, quando estive com Alexandre em Luanda, é que lhe contei que era essa então a minha primeira vez em Angola porque me tinha insurgido contra a ordem do anti-democrático governo de Marcelo Caetano que, por despacho, me impusera "o embarque imediato, sob regime disciplinar especial, para a Região Militar de Angola": não embarcara em julho de 73. Não lhe disse então que quando tomei essa decisão, entre as imagens e memórias que o espírito se encarregou de levar ao Depósito Geral de Adidos, estava o diálogo que mantivemos no outono de 1969. Mas fica agora dito em sua memória - Alexandre do Nascimento, angolano, cardeal (1925-2024).

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