Mário Soares, escritor: ou a política como cultura - um livro

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Não é segredo para ninguém que Mário Soares, de que celebramos o centenário num ano de aniversários diversos (Camões, o 25 de Abril, os centenários de António Ramos Rosa, de Alexandre O’Neill e de Sebastião da Gama, os 100 anos do surrealismo francês e do manifesto de Breton), se tivesse oportunidade de viver mais uma vida, escolheria a vida de escritor.

“O meu pai”, escreve o militante número 1 do PS em Incursões Literárias (Temas & Debates, 2003), “que era um pedagogo nato, um homem que tinha o dom de conhecer as pessoas, sempre me aconselhou a ser escritor.” (p.7). Apesar da autocrítica que faz a respeito de um talento que teria ficado por explorar, Mário Soares, logo nas páginas iniciais dessas suas “incursões”, confessa: “De qualquer modo, a literatura sempre me apaixonou.” E fala das suas leituras: do amor pela ficção portuguesa, mas também da entrega às leituras das literaturas francesa e espanhola, ibero-americana e russa, sem esquecer a alemã, a inglesa, a americana.  E é extremamente curioso que Soares igualmente confesse o seguinte: “É certo que sempre tive, talvez, uma visão literária da vida e das personagens, romanescas ou não, que encontrei no meu caminho.” É esta uma frase tutelar. É uma frase que define uma existência. José Manuel dos Santos, que em ensaio modelar sobre Soares, diz tudo, ou diz muito, decerto concordará com esta especial afinidade entre dois mundos por vezes (ou quase sempre?) tão díspares e que em Soares se harmonizavam: o mundo da cultura e o mundo da política.

Mário Soares - cuja envergadura intelectual só tem, de comparável, no século XX, a de Álvaro Cunhal, já pelo seu lugar como ficcionista (o autor de A Casa de Eulália) e crítico literário (o magistral crítico de “Cinco notas sobre forma e conteúdo”, texto de 1954, enviado da prisão para os números 131-132 da revista Vértice), já como pensador da política e coerente defensor da liberdade em todas as dimensões da vida portuguesa, e sem titubear -  foi o portador de uma forma de viver a política que não podia jamais ser sinónimo de apagamento de uma personalidade, ela própria romanesca.

Hoje, com efeito, que político se lhe compara na palavra cortante e mordaz, mas inteligente e plena de humor? A sua aura romântica, hoje perdida, nenhum político do PS a tem, ou soube merecer. E aqui - diga-se sem pejo - a literatura importa. Não para fazer brilharete em sessões no plenário ou em congressos, mas porque a literatura sustenta uma visão de mundo. Esse amor aos livros e aos escritores confere a certos episódios da biografia política de Soares a carga trágica de que Portugal, hoje, tão órfão de referências, necessita.

De resto, foi essa aura que deu a muitos líderes políticos a espessura de uma acção que, movida por altos ideais, exigiu pragmatismo em tempos de guerra e de depressão económica, de colonialismo e de luta pelas liberdades. Churchill e De Gaulle, Willy Brandt e Olof Palme, John Kennedy ou o seu irmão Robert; Lech Valesa ou Nelson Mandela (Soares adoptará uma frase que é dele, Mandela: “Só é vencido quem desiste de lutar”), ou Martin Luther King, é essa a geração de políticos a que o fundador do PS pertence. Políticos para os quais fazer política era, por muita frieza e cálculo que tal exige, fazer cidadania. E fazê-la com coragem (física, se fosse preciso).

Linhagem, já agora, feita de heróis da cultura. Em Incursões Literárias, Mário Soares, o Presidente com Cultura dentro, disserta sobre Bento de Jesus Caraça e Sophia de Mello Breyner; traça os retratos de Miguel Torga e de Agostinho da Silva; evoca, com que finura de humor, Mário Cesariny; faz o elogio de Antero e admira Teixeira-Gomes; debate-se com Eça e Aquilino, recorda José Gomes Ferreira, e não esquece Rodrigues Lapa, traz à memória o esquecido Rodrigues Miguéis; e escreve, num cá-tu-lá, sobre Cardoso Pires e Natália Correia, evoca Alçada Baptista e Cochofel…

Mário Soares marca um tempo decisivo na nossa vida político-cultural porque soube conciliar certa utopia que, vinda de Garrett (soldado das letras e da liberdade, assim o designa o cronista-memorialista de Incursões Literárias) e chegando a Manuel Alegre, pouco ou nada tem que ver com o perfil do político de hoje: o tecnocrata burro (Soares detestava-os), o burocrata técnico (deplorava-os), o gestor amigo dos números, inimigo das pessoas (Soares desfazia-os), os medíocres fazedores dos conluios e dos pactos. Por isso, nas suas “incursões”, a literatura é já uma forma de ser-se político… um político que compreendeu que, sem memória cultural, um país nada mais é senão um conglomerado acrítico não de cidadãos, mas de meros contribuintes.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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