Mário Soares: como ele amava a vida
Conheci Mário Soares mais de perto quando ele foi professor convidado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, em 1996. Eu era então presidente do Conselho Científico, a sua presidente, como insistia em chamar-me, mesmo que o cargo não significasse tanto, o que tentei explicar-lhe várias vezes, sem sucesso.
Depois da sua conferência, por vezes jantava em Coimbra com os seus amigos de sempre, o António Campos e o Fernando Vale, e eu ia também, em jeito de privilegiada que tinha direito a participar na melhor parte da “aula”. Havia sempre histórias divertidas do passado, mesmo que os contextos fossem tudo menos isso.
Recordo especialmente as da sua vida em São Tomé, para onde foi deportado em 1968. Talvez por ser uma terra que conheço bem ou por ter vivido em África numa cidade pequena, ainda assim maior que São Tomé, consigo imaginar com precisão como seria difícil a sua vida ali, vindo de Lisboa, sem ter com quem conversar, sem jornais para ler ou viagens para fazer, esperando cartas espaçadas e, seguramente, autocensuradas, preso numa pequena ilha retalhada em roças de cacau, onde aconteceria muito pouca coisa.
Ou será que ele encarou esse período como aquela passagem de ano que passou na prisão e sobre a qual escreveu: “Foi uma experiência nova que nunca tinha tido”?
O certo é que, nessa noite, não lhe ouvi um único lamento, apenas histórias contadas com um humor muito requintado, como a dos seus almoços na pensão onde também comia o PIDE que o vigiava. No fim, pedi-lhe muito que escrevesse tudo, porque essas vivências tão pessoais não há historiador que as descubra.
Outra vez, falou-nos das flores que cultivava na sua casa de Nafarros, e até prometeu trazer-me um vaso na próxima aula. Dei por mim admirada por um político tão importante conferir às suas flores o mesmo carinho que a minha Mãe dava às dela.
Foi assim que eu conheci Mário Soares, a pessoa que acima de tudo amava a vida, ainda que a vida e a política nunca se tivessem separado nele até ao fim.
Quis o destino que fosse a primeira-ministra em exercício quando ele faleceu, a 7 de janeiro de 2017, por ausência de António Costa na Índia. Lembro-me da dificuldade que foi supervisionar o protocolo, tantos eram os que queriam estar sentados nos Jerónimos, de preferência nas primeiras filas.
No meu lugar, nessa manhã fria, mas com sol, só pensei como ele devia estar a apreciar a cerimónia, feita com dignidade, estética aprimorada, discursos elegantes e a cultura merecida, tudo programado com o enorme saber e o bom gosto do seu querido amigo José Manuel dos Santos.
Este sábado, na Gulbenkian, acho que também teria gostado muito de algumas das palavras que lhe foram dirigidas. Quem me dera acreditar que as ouviu.