Marcelo deve ser vacinado? As eleições devem ser adiadas?
O Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República devem ser vacinados primeiro do que senhor Manuel, um escriturário de 55 anos, que sofre de insuficiência cardíaca?
Se a resposta for sim, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Ferro Rodrigues já deviam ter levado a primeira dose de vacina, simultaneamente com os profissionais de saúde que estão a combater a pandemia.
Se a resposta for não, devem esperar, pelo menos, até abril ou maio pela entrada em execução da segunda fase do plano nacional de vacinação.
O Presidente da República, o primeiro-ministro e o presidente da Assembleia da República devem ser vacinados primeiro do que a dona Maria, reformada com 70 anos, que só será vacinada lá para abril, maio ou junho?
Marcelo Rebelo de Sousa (72 anos) e Ferro Rodrigues (71) estão, como a senhora Maria, no grupo etário que deve começar a ser vacinado nessa altura, na tal segunda fase, por isso não beneficiariam de qualquer privilégio especial se fossem vacinados antes dos cinco a sete milhões de portugueses que ficarão para o fim.
Admitindo que nenhum dos políticos que citei sofre de uma doença que o coloque na lista de prioridades para a vacinação, na prática só teremos duas presunções de polémica quando, a propósito dos indecisos testes positivos e negativos para a covid-19 do Presidente da República, alguém levantou a hipótese de estes titulares de órgãos de soberania serem considerados prioritários para a vacinação: só estaríamos numa situação de "privilégio" se fossem os três vacinados nos próximos dias ou se António Costa, o mais novo (59 anos), fosse vacinado antes da terceira fase.
Há outra polémica em cima da mesa: as eleições presidenciais, marcadas a meio de um confinamento geral, devem ou não ser adiadas?
Uma boa parte dos que defendem que as eleições devem ser realizadas argumentam que constitucionalmente isso não é possível. Eis um raciocínio que é um tiro de morte na Constituição: um texto constitucional que não dá escapatória para uma situação que pode provocar umas dezenas ou centenas de mortes é um texto constitucional errado. Não acredito nisso, certamente haverá forma jurídico-constitucional para resolver este assunto, caso seja necessário.
A questão não pode ser técnico-legal, a questão tem de ser política, e isso significa que o poder político tem de decidir o que é melhor para o país: despachar já o processo eleitoral ou arranjar forma de o adiar.
O problema da realização de atos públicos que envolvam grandes massas populacionais tende a ser visto de forma uniforme: há gente a achar, desde março passado, que todos deveriam estar fechados em casa; há gente que, pelo contrário, acha as medidas de contenção do vírus disparatadas. Até gente tecnicamente qualificada em termos de saúde pública acaba a defender, radicalmente, uma posição ou outra.
O bom senso, parece-me, está na avaliação concreta de cada ato público e de cada momento específico da evolução da pandemia, que podem implicar respostas completamente diferentes para situações aparentemente similares - é isso que a pandemia já, claramente, nos ensinou.
No caso das presidenciais, o que teremos no essencial de avaliar é se a deslocação das pessoas para a votação aumenta significativamente o perigo de contágio e se os locais onde elas votam têm medidas de prevenção adequadas.
A possibilidade do voto antecipado e as medidas de prevenção nas assembleias de voto já indicadas apontam para o reforço de segurança do processo (o documento oficial sobre esse tema é extenso e detalhado), pelo que aí parece haver algum conforto.
Restaria, então, o problema das deslocações - mas, no essencial, elas não são muito diferentes em perigosidade do que as deslocações aos supermercados, consideradas essenciais e, por isso, permitidas durante boa parte do dia, no período de confinamento.
Tanto sobre a vacinação antecipada de titulares de órgãos de soberania como sobre o adiamento das eleições, a questão começa e termina num único ponto: na véspera de o país ser obrigado, pelo menos durante um mês, a voltar a um confinamento geral, tem o poder político credibilidade para decidir estas questões sem afetar negativamente o próprio comportamento das pessoas durante o confinamento?
Aqui há dois meses pensaria que não. Hoje, com o "balde de água fria" que os números da covid-19 estão a dar-nos, penso que as pessoas precisam de sentir que o poder político pensa, sempre, em primeiro lugar, nelas.
Por isso, as eleições deveriam mesmo ser adiadas e os titulares dos órgãos de soberania deveriam respeitar o calendário geral de vacinação - é uma inconveniência ou uma trapalhada para as instituições, é verdade, mas é uma forma de elas se credibilizarem (e bem precisam!) junto da sociedade.
Jornalista