Publicado pela The Poets and Dragons Society, que tem no editor e poeta Dinis H. Machado uma inspiradora presença, este livro de Manuel de Queiroz não é um livro plácido, daqueles que um leitor saudoso dos tempos da revolução de Abril pode ler. Muito menos é um romance com prosa delicodoce, feita toda idealismos, pensada para agradar ao leitor médio-baixo que é o que existe em Portugal. Manuel de Queiroz, que publicou já na Caminho e foi prémio-revelação APE no início do deste século, é um autor discreto. Anda longe da festa, ou das festas literárias e dificilmente o encontraremos em festivais, excepção feita aos que, a convite de amigos, ou a propósito de temas que o movem (e comovem), pode aceitar, mas sempre com certa reserva, com certa escarninha aceitação de poder ceder. Isso importa, pois que o narrador deste romance, O Lado Negro do Vermelho, cujos ecos de Stendhal não vão para além do irónico título, é assim: de certo modo escarninho, de certo modo melancólico. Um jornalista - jovem, com certo idealismo revolucionário - que, em 1975 - em pleno “Verão Quente” tem à sua frente o mistério de saber quais as razões verdadeiras que levaram à morte do seu pai. Se tivéssemos de pensar numa linhagem de autores que influenciam Manuel de Queiroz, três, na literatura portuguesa, me parecem ter aqui alguma presença: Cardoso Pires, Vergílio Ferreira e certo Manuel da Fonseca.Do primeiro a arte de montar uma narrativa quase policial. Não se trata, como por aí se vê, de uma narrativa que se deseja policial porque está na moda fazê-lo, mas antes porque ao protagonista deste romance a morte do pai (e Queiroz é exímio na arte de descrever os gestos desta personagem revelando a sua psicologia, a lentidão de certas cenas domésticas é de quem leu com atenção Hemmingway, John dos Passos e Faulkner) se lhe oferecer como um enigma que só por via da catálise narrativa poderá ser compreendido pelo leitor. A questão não está exactamente na pergunta “Quem matou?”, mas antes nas razões da morte. Não revelarei, claro, o desfecho, pois que me parece que este romance, para além do mais, surpreende pelo inusitado da descoberta que o jovem jornalista fará sobre esse pai mítico, de legenda política. Domínio na arte dos diálogos, eis o que de Manuel da Fonseca podemos identificar em Manuel de Queiroz como possível herança e, sobremaneira, a forma como, aqui e ali, lembrando certa forma de pensar dum Vergílio Ferreira, o autor pára, suspende o ritmo do telling para fazer o leitor mergulhar nas tensões e contradições do protagonista. As perguntas sucessivas sobre a mãe que oculta o mistério que se traduzirá numa espécie de queda na realidade dos actos e dos factos; a revelação de uma falha humana que acaba por trazer ao jornalista toda a imagem primitiva dessa mãe silenciosa e que, nunca por nunca, poderia ter dito a verdade de um crime moral; a questão da identidade do filho que nasce idealista e se torna, com o avançar da narrativa, um desiludido da revolução (mas sê-lo-á?), a tudo isto se soma o fundo político em que Queiróz - da geração que viveu Abril com toda a urgente liberdade que durante décadas foi subtraída por um regime amordaçado - faz evoluir as personagens, algumas delas ecos, decalques, adaptações de personalidades conhecidas daquele momento complexo, esse Verão de 75.Há, portanto, um interesse duplo neste livro: por um lado a trama romanesca. Detectivesca, quase. Por outro lado, a sólida narrativa dos sucessos político-sociais de um tempo que poucos saberão contar com a arte de Manuel Queiroz. A rapidez a que tudo mudava nesse conturbado período político, as cenas vivas de actores do maior relevo e que, da Fonte Luminosa aos Ralis participaram do fundo revolucionário do PREC, eis que neste romance empresta à ficção a lei da verosimilhança e sem a qual fazer literatura redunda em fantasia, e má. É que, afastando-se de certa moda internacionalista que mina de mau gosto e de irrealismo bacoco muito romance de hoje (com chagas que irão perdurar neste paupérrimo país de desleituras e de leitores mortos-vivos), Manuel de Queiroz faz uma pergunta essencial a quem hoje se diz autor de livros: como é que se pode fazer literatura se não se tem um pleno método que corresponde à ideia final a que se pretende fazer chegar a escrita? No caso do autor deste romance onde lemos cenas de hilariante tragicomédia (a cena em que o jornalista e uma sua amiga se vão eroticamente envolvendo no frutuoso caso político-amoroso e as hesitações do homem que embatem na lucidez dessa mulher emancipada), o tema político serve bem algo que Manuel Queiroz leu em Albert Camus e não esqueceu: o escritor verdadeiro é aquele que, perante os dados do seu tempo, deles se serve para testemunhar do seu próprio papel nisso a que chamamos História. Professor, poeta e crítico literárioEscreve sem aplicação do novoAcordo Ortográfico.