A mesma luz branca de Lisboa imortalizada pelo realizador suíço Alain Tanner continua a banhar a cidade, reflectida pelo rio e espelhada no seu casario. Se hoje chegasse a Portugal o marinheiro, personagem principal do filme de Tanner, talvez ainda fosse vítima de roubo e agressão e com um pouco de sorte encontraria Rita a criada de quarto com um diamante negro entre as pernas e viveria as mais belas cenas eróticas da sua paragem na cidade branca.Lisboa na vertente luminosa não mudou. Mas alterou e muito a sua componente sociológica e tornou-se uma cidade mais caótica e desregulada que a Lisboa de Tanner dos anos 80 do século passado.Quem vive em Lisboa, ou quem a visita e a percorre de carro ou a atravessa a pé, nota as diferenças com bastante facilidade. Entram, diariamente, cerca de 400 mil carros que se juntam aos 200 mil que existem na capital.Mal policiada, Lisboa virou um caos onde as novas realidades dos distribuidores de comida, seja em bicicleta ou motorizada, tornam o trânsito infernal. Os táxis TVDE, Uber e Bolt dão uma ajuda na instalação da confusão. Param, inopinadamente, onde um qualquer passageiro utilizador dessas plataformas de transporte deseje subir ou descer de um destes carros. Quatro piscas ligados, a indiferença perante a fila de carros que, atrás, desesperadamente, espera o desembarque ou o embarque de um ou mais passageiros, o descarregar de malas, mochilas ou seja lá o que for. Que se lixem os que atrás, já numa longa fila, esperam, sejam eles simples veículos particulares ou um qualquer autocarro público.Não há policiamento da PSP ou da Polícia Municipal.As leis de circulação e de trânsito não são cumpridas nas suas mais elementares componentes. As bicicletas dos distribuidores de comida circulam de noite sem luz, seja frontal, seja traseira. São zombies, sombras indistintas que podem surgir do nada. Passam sinais vermelhos, aparecem em contramão, atravessam passagens de peões ignorando o sinal verde de prioridade para quem anda a pé. Circulam nos passeios com desrespeito pelo espaço dedicado aos peões. Quase não os vemos. Pressentimo-los quando já estão, perigosamente, em cima de um qualquer transeunte mais desatento. Não há um agente policial para apreender as bicicletas que, ilegalmente, circulam sem luz. Os lisboetas arriscam a vida, diariamente, com uma total ignorância das bicicletas e motorizadas pela legislação de trânsito da cidade. Não há Polícia Municipal. Nem PSP. Não sabemos por onde andam. Ou talvez saibamos! Quando surge a Polícia Municipal vem com reboques para bloquear ou multar um qualquer veículo em estacionamento proibido, ainda que a sua paragem seja por breves minutos e não interrompa o fluxo de trânsito. E multam numa implacável caça ao dinheiro sacado ao lisboeta sem dó nem piedade. Se há organização e disponibilidade policial é para a multa e o bloqueio de veículos.Lisboa vive dias de desorganização e caos. Não existe qualquer forma de fiscalização policial. Os polícias já não servem as populações num sentido preventivo. Estão nas esquadras no despacho burocrático dos avisos de multa ou na emissão de notas dos tribunais. Querem encontrar os agentes da PSP? Vão às grandes superfícies, aos encontros de futebol, a uma ou outra embaixada de um qualquer país mais ameaçado. Por aí encontram elementos da PSP nos gratificados. A PSP já não é das populações. É de quem a possa pagar.Com o total incumprimento da lei e da ordem, Lisboa vai-se transfigurando. As trotinetes são usadas perigosamente nos passeios públicos ameaçando peões, sejam os mais velhos ou as crianças. Cruzam céleres os espaços usados pelos pedestres arriscando a sua integridade física. Depois abandonam as trotinetes seja lá onde for. Nos passeios, nos lugares de estacionamento dedicados a viaturas automóvel, no meio de uma qualquer rua.As motorizadas de distribuição de comida, sabemos lá se com seguro ou não, executam perigosas gincanas entre o trânsito compacto. Passam rentes aos automóveis num exercício ameaçador, seja pela direita ou pela esquerda. Não conhecem semáforos amarelos e os vermelhos são, sistematicamente, violados. Circulam céleres sem respeito pelos semáforos vermelhos e pondo em perigo os que, entretanto, avançaram, com toda a legitimidade, com o sinal verde. As passagens de peões não são respeitadas, num desprezo total pelos que as atravessam.Esta é a Lisboa que enfrentam, todos os dias, os que a visitam ou que por cá habitam. Solitários e sem entidades oficiais que os defendam, ponham ordem e disciplina numa cidade capital europeia onde se instalou o caos e falta de respeito pelas mais elementares leis de trânsito e circulação de peões e viaturas.Onde está a acção da Câmara Municipal de Lisboa? Onde está o Governo? Por onde andam as polícias, a PSP e a Municipal? Não sabemos. Resta-nos a luz branca de Lisboa, imortalizada por Tanner. E o rio, silencioso e calmo, que beija o casario trazendo à cidade essa luminosidade rara que, apesar do caos, ainda vamos conseguindo preservar e amar. Jornalista