Linha de demarcação

Publicado a

Pelos mesmos dias em que nós celebrávamos Camões e depois os 40 anos da nossa adesão às Comunidades, na pequena aldeia francesa de Mormant-sur-Vernisson, a convite do partido de Marine le Pen, reunia-se um conjunto de figuras de primeiro plano do grupo político que se denomina “Patriotas pela Europa” - aquele em que se inclui o Chega. Entre os convidados, procedentes de mais de uma dúzia de países, estavam presentes atuais governantes, com destaque para Orban e Salvini, vários já com essa experiência (como o ex-PM checo Babis, que lidera o partido Aliança dos Cidadãos Descontentes), tendo ainda outros, como o holandês Geert Wilders, participado à distância.

Não se tratava apenas de exprimir solidariedade e apoio a Le Pen, atingida recentemente por uma decisão judicial, agora sob recurso. Nesta “Festa da Vitória” - o nome do evento - celebravam-se os patamares alcançados em França no último ano: o Rassemblement National foi primeiro nas europeias com 32% e, depois, na segunda volta das legislativas, sem as ter vencido, obteria 36 % dos votos dos franceses (ou seja, se vigorasse um sistema proporcional, dificilmente lhe teria escapado o primeiro lugar). Num caso e noutro, a condução pertenceu já não a Le Pen, mas a Jordan Bardella, que é hoje presidente do partido e do próprio grupo Patriotas - e uma das figuras políticas mais conhecidas do público francês.

Justifica-se prestar atenção aos 13 discursos que nessa “Festa” se sucederam, não apenas aos de Lagos e Lisboa.

À primeira vista, pareceriam versar só os habituais temas agregadores - a imigração e o poder de Bruxelas - em registo incendiário. Orban denunciou uma “troca organizada de populações para substituir o chão cultural da Europa”, com a constante exortação a que “não deixemos violar as nossas filhas e as nossas mulheres, e destruir as nossas cidades”. Le Pen ergueu-se contra o “pacto com o diabo em curso” por parte de um “império que se impõe aos nossos povos”: um “pacto de submersão migratória, de diluição demográfica e de desaparição cultural da Europa”, disse ela. Há contudo, vendo de mais perto, uma visão que perpassa: a de “não abandonar a partida, mas ganhá-la”. Salvini fala em “retomar em mãos o destino e o futuro da Europa”. Le Pen é mais directa quanto ao objectivo : “Tomar o poder na França e na Europa.” Em modo de resposta, Orban apela, assim, em território francês: “Sem vós não poderemos ocupar Bruxelas.”

Não é só linguagem de comício. Num livro recentemente publicado que é um sucesso de vendas - Ce que je cherche - o presidente do grupo precisa o objectivo: “Devolver a sua força ao Estado-Nação”, mantendo apenas da Europa, e só na esfera económica, o que forem “cooperações necessárias”.

Interagindo de diversos modos com a emergência autocrática em curso nos EUA, defrontamos um projecto multifacetado de demolição da UE, sob o manto ilusório de uma devolução aos Estados europeus de feições - ultramitificadas - do seu passado. Em vez de fechar os olhos a essa realidade, faz todo o sentido tornar mais visível a linha de demarcação no plano político-parlamentar. Justifica-se mais do que nunca que se distinga o arco europeísta. Retirando as devidas consequências.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

Diário de Notícias
www.dn.pt