Ler em agosto: Ana Hatherly, cabala e poesia

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Trata-se de um pequeno - e magnífico! - livro de ensaios dedicado à poeta, professora (especialista na arte do Barroco e voz maior da Poesia Visual no nosso país), artista plástica, investigadora e ensaísta Ana Hatherly (1929-2015). Um livro não se mede aos palmos e este, em particular, que Ana Marques Gastão escreve com mão sábia e terna, amorosa e competente, é próprio dessa raríssima família de livros que, sendo de ensaio, podemos, neste Agosto que começa, levar para a praia e ler. Montaigne, o pai do género ensaio, considerava ser a liberdade a condição basilar para este tipo de escrita. Ensaio é, como a etimologia explica, “balanço”, “exame”, mas também está relacionado com a imagem do enxame, di-lo Jean Starobinski, num ensaio sobre o ensaio. Enxame de ideias, plural modo de associar saberes, o título deste livro de Ana Marques Gastão - uma das nossas poetas mais importantes e que, hoje, ocupa, com a sua obra, um lugar central na literatura portuguesa - é, de resto, sintomático: Ana Hatherly Plurinímica. Resposta à pluralidade de ‘eus’ da galáxia em expansão que foi e é Fernando Pessoa, o conceito que Ana Marques Gastão criou - “Plurinímica” - é um desses neologismos que perfazem um programa de pensamento. Plurais os nomes de Ana Hatherly? Decerto. Ana é um anagrama - lê-se de trás para a frente e em muitos títulos seusa é “Ana” o âmago substantivo que anima um fazer-escrita: Rilkeana, Tisana, Leonorana, Anacrusa, Joyceana… A ensaísta Ana Marques Gastão explica-nos: “O nome ANA, que surge em diversas obras, é e não é (…) o nome da autora, por mais associações identificativas que possam fazer-se. A partir daí podemos considerar a possibilidade de existência de uma heteronímia (…). [Mas no caso de Ana Hatherly] estamos perante uma PLURINÍMIA (…), nome fragmentado (A-N-A), deslocado, desviado, repetido de modo vário e em modo anagramático ou acróstico (…).” (p.23).

"'Ana Hatherly Plurinímica' é, em boa hora publicado na excelente editora de Manuel Rosa, a Documenta. Há quem diga que Agosto, ou o Verão, é/ são a 'silly season'… Não tem de ser assim.” António Carlos Cortez

Uma das teses essenciais de Ana Marques Gastão (e isso prova da sua extrema sagacidade de leitora, do seu profundo e honesto estudo) é esta, vinculada a uma teoria do nome: “De uma forma ou de outra, o alfabeto estrutural, que enceta um discurso cosmológico, percorre toda a obra da escritora, também nos intervalos, nos espaços em branco, e surge transposto e permutado na dinâmica do verbo. (…). Assim, se o entendermos enquanto partícula energética. Somos energia (…). A luz emite partículas, por exemplo, fotões. É essa a metáfora da arte que a autora nos transmite.” (p.22). Este é um livro precioso também por outros motivos, para além das sugestões e demonstrações interpretativas que Ana Marques Gastão nos dá.

Num dos ensaios - o zénite do livro, diga-se -, “Anagregoriana”, é à luz da ideia do poeta como “um eficaz calculador de improbabilidades”, codificador e descodificador das artes combinatórias que a linguagem (ou as linguagens das artes) potencia, que o pensamento de quem lê atinge momentos de verdadeira descoberta: quando se refere ao poeta como criador de códigos, quando lê o trabalho poético-visual de Hatherly à luz duma “práxis conhecedora da cabala”, Ana Marques Gastão arrisca saltos hermenêuticos de grande ousadia e, por isso mesmo, valiosos, porque heterodoxos. Veja-se este lance de leitura (que é alcance): “Entenda-se Cabala (…) como técnica de leitura e interpretação do texto sagrado (…).

A música deverá ser compreendida, neste contexto, no enquadramento experimental que sempre possui, sabendo nós que tem como matéria-prima o som (…).” (p.40), no que, defende-se, é uma das linhas axiais da poética da autora de Mapas da Imaginação e da Memória: o aspecto cabalístico e computacional cruzam-se na arte hatherlyana. Por isso se revela: “Ana Hatherly era conhecedora dos estudos de Isaac el Ciego, de Abraham Aboufala, Joseph Gikatilla, Mosés Cordovero, Isaac Louria e dos autores da cabala cristã que os seguiram na demanda do mundo e dos seus mistérios, a partir de uma ideia fundada na crença dum Deus Infinito, o único Coroado (Ei-Sof ).” (p.41). É com esse saber que devemos nós saber ler os poemas-desenho desta extraordinária poeta e artista da nossa cultura, Ana Hatherly, já que “[todo] o texto-desenho na sua obra deve merecer uma aproximação hermenêutica” plural: interpretar Ana Hatherly é aceitar que estamos perante “um sistema sígnico” a estudar na sua pluralidade porque esse sistema é fruto “de um corpo em movimento entre os vários elementos - sobretudo o ar (o sopro), que tem uma velocidade” e, se assim é, ler hoje Ana Hatherly implica que todo o leitor compreenda o grau conceptual desta escrita-imagem.

Estamos em Agosto e há muito a dizer sobre este magnífico livro de estudos de Ana Marques Gastão. Desde os 72 nomes de Deus, associado às 22 letras do alfabeto, passando pela simbologia do número oito, ao modo como toda a obra de Hatherly é “trabalho de tecelão” (as páginas 42 e 43 deste livro são de uma sagacidade que raras vezes o ensaísmo consegue atingir, e assim as páginas 44 e 45, reclamando-se o pensamento, entre outros, de Jung e de Deleuze, ou o pensamento artístico de Kandinski), Ana Hatherly Plurinímica é, em boa hora publicado na excelente editora de Manuel Rosa, a Documenta. Há quem diga que Agosto, ou o Verão, é/são a silly season… Não tem de ser assim. Em Agosto, com o mar em frente, ou numa esplanada de sereno silêncio, com as cidades um pouco vazias, pode ser que quem leia este livro se leia na sua condição humana. É um livro que ensina muitíssimo. É uma arte da leitura de uma grande leitora que soube ver como Ana Hatherly criou “uma vasta máquina-imagem do mundo-máquina em velocidade intensíssima.” Em 2024, este é, sem dúvida, um dos livros a ler mesmo para além do Verão.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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