Kamala em contrarrelógio para salvar a Democracia dos EUA
Kamala Harris, 59 anos, casada, desde 2014, com o advogado nova-iorquino Douglas Emhoff, sem filhos (dois enteados), primeira mulher a chegar à vice-presidência dos EUA, pode ser a primeira mulher a conquistar a Casa Branca.
Filha de uma indiana e um jamaicano, tem bacharelato em Artes pela Universidade de Howard e licenciatura em Direito pela Universidade da Califórnia. Vice-Presidente dos EUA desde 20 de janeiro de 2021, escolhida por Joe Biden para sua running mate no verão de 2020, foi senadora pela Califórnia entre 2017 e 2021, procuradora-geral da Califórnia entre 2011 e 2017 e procuradora de São Francisco entre 2004 e 2011.
O cargo de vice-presidente dos EUA foi desenhado para que o seu poder seja silencioso: o poder de apenas atuar se o presidente falhar. É certo que com Joe Biden a tomar posse com 78 anos e dois meses, isso já colocava Kamala com um protagonismo extra para o cargo, logo à partida.
Ainda assim, era difícil imaginar cenário tão pesado para Kamala herdar: a desistência de Biden a apenas 107 dias da eleição, menos de um mês da Convenção Democrata de Chicago.
Quando assumiu o posto de vice-presidente colocou, pela primeira vez, os três postos de topo nos conselheiros de um vice-presidente compostos só por mulheres. Tina Flournoy, chefe de gabinete do ex-presidente Bill Clinton, foi chefe de gabinete; Rohini Kosuglu, ex-chefe de gabinete de Kamala Harris no Senado, conselheira principal da campanha Biden para Assuntos Asiáticos, professora em Harvard e natural do Sri Lanka, foi conselheira para a Política Interna; Nancy McEldowney, embaixadora dos EUA na Bulgária durante as presidências Bush e Obama e ex-diretora do Foreign Service Institute, a conselheira de Segurança Nacional.
“O estatuto da mulher é o estatuto da democracia”
A vice-presidente dos EUA fez o seu primeiro discurso nas Nações Unidas em março de 2021 e, na altura, declarou que “o estatuto da mulher é o estatuto da democracia”. Como primeira mulher a falar como vice-presidente dos EUA, apontou: “Eleanor Roosevelt, que desenhou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, disse uma vez que ‘sem igualdade não pode haver democracia’. Noutras palavras, o estatuto da mulher é o estatuto da democracia.”
Kamala acrescentou: “O estatuto da democracia também depende fundamentalmente do empoderamento da mulher. Não apenas pela exclusão da mulher no processo de decisão, que dita o falhanço da democracia, como também porque a participação da mulher fortalece a democracia.”
Não por acaso, Kamala escreveu há dias: “Sejamos claros: Donald Trump assinaria uma lei de impedimento federal do aborto e restringiria o acesso à contraceção. É isso que está em jogo em novembro. Nós vamos travá-lo.”
Haverá tempo?
Kamala passou a ser mais que Kamala: passou a ser a herdeira da Administração Biden e beneficiou de um endosso claro e imediato do presidente que abdicou da recandidatura.
Haverá tempo para que seja ela a salvar a Democracia americana de um Trump 2.0, tão ameaçador para os EUA e para o mundo?
Será demasiado tarde? Talvez.
A contagem decrescente aproxima-se perigosamente dos 100 dias finais. Trump está com a dinâmica de vitória, mas o efeito psicológico pode ganhar a corrida ao relógio.
Kamala nunca foi uma vice-presidente popular, tem dificuldade de afirmação até em setores democratas, recebeu do presidente um presente envenenado ao tornar-se a “czarina” da gestão da fronteira Texas/México.
Se escolher Josh Shapiro, governador da Pensilvânia - que já a apoia - para seu vice é possível que a capacidade de Harris disputar a Trump o Midwest possa mudar rapidamente.
Joe Biden entre a coragem e a dor
É humano, demasiado humano, querer preservar o poder. O poder, dizem, não se oferece: perde-se. Que outro líder mundial faria o que Joe Biden fez no passado domingo?
Comparemos isto com a Rússia ou a China. Sim, os EUA ainda têm muitas vantagens.
Para o 46.º presidente norte-americano resta terminar o seu mandato presidencial com a maior dignidade possível. Joe Biden ficará como presidente de um só mandato - como provavelmente acreditava que seria, quando concorreu há quatro anos -, mas com dois legados muitos relevantes: o de ter defendido a Ucrânia da agressão russa, apesar da opção estratégica americana de fletir forças para o Indo-Pacífico; e o bom desempenho económico dos EUA durante o seu consulado.
Os republicanos ficaram com as contas da vitória totalmente baralhadas. O argumento estava preparado para derrotar um Biden velho e fragilizado.
Só que, a partir de agora, é uma nova eleição.
Há um ou dois anos, Kamala Harris era para Donald Trump uma adversária muito mais fácil de derrotar do que Joe Biden. Menos competitiva nos Estados decisivos. Menos aceite pelo eleitorado branco com baixas qualificações. Mais permeável à tese republicana de ser da onda woke (da qual o velho Joe escapava).
O contexto é quase tudo.
A situação em que Joe Biden caiu nas últimas três semanas foi muito traumatizante para os democratas. A ideia instalada era a de que os esperavam três meses penosos até a uma derrota humilhante em novembro.
A desistência de Biden, tendo sempre um lado pessoal e afetivo muito custoso, tornou-se um alívio. E abriu uma janela de esperança que, na dinâmica de uma corrida presidencial, não pode ser negligenciável.
Para já, os fundos doados à campanha democrata dispararam nas horas seguintes à desistência de Biden. Bom sinal.
Trump e Vance como escorpiões a lidar com a rã?
Donald e JD Vance não deverão conseguir resistir à tentação de fazer uma campanha superagressiva, a roçar o racismo e o machismo, contra a nova opositora. Isso pode ser uma bela oportunidade para que os democratas recuperem o eleitorado independente e moderado, que já não aceita esse tipo de comportamento, mas estava a fugir do Biden versão fragilizada.
Elise Stefanik, congressista republicana de Nova Iorque, que chegou a estar na shortlist de Trump para a vice-presidência, apresentou na Câmara dos Representantes, uma resolução a condenar Kamala pelo seu trabalho na gestão da fronteira. E Mike Johnson, speaker do Congresso, defende a demissão de Joe Biden como presidente, dando cobertura à tese de JD Vance, que alega: “Se Biden não tem condições para ser candidato, como pode ter condições de ser Presidente?”
Este escalar institucional dos republicanos contra Biden e Harris pode ajudar os democratas a posicionarem-se como a solução mais aceitável para a maioria silenciosa que, em novembro, quer dizer nas urnas que está farta desta política hiperpolarizada e doentia.
Esqueçam sentenças de vitória antecipada trumpista ou sondagens comprometedoras feitas até aqui.
A eleição começa agora. Tudo pode acontecer.