Justiça, grande e pequena
I.
Onde estão as pessoas? As que se indignam e se ultrapassam, partindo da agenda, do quotidiano e das avenças? As que assumem e fazem barulho, as que gritam e que, há uns tempos, seriam presas e caladas?
São sempre poucas, como sempre foram. Toda a gente tem os seus afazeres. As suas comendas, grandes ou pequenas. Os seus medos. As suas famílias. E até pode aí vir guerra outra vez.
É mau, quando o incómodo da indignação cai sobre os justos. Os demais, os brutos e errados, estão aparentemente bem. Sob o conforto do processo judicial, da justiça construída para proteger todos de alguns, mas que também é a justiça que deve proteger um de todos. Está certo. Mas, de entre a neblina de aparências e frases curtas, algo deveria surgir. Algo como: não há opiniões respeitáveis quando elas se concretizam no ódio a outros; não há posições aceitáveis quando a sua base dita política é a de eliminação de qualquer ponderação de diferenças e possibilidades ao abrigo do que o permite; não há aceitação democrática quando esta afasta todo o direito natural construído ao longo de séculos e que tanto estabeleceu a liberdade individual quanto a dignidade de todos perante os demais e o Estado. Há limites, nesta coisa de vivermos juntos. Haverá sempre. A questão é se os queremos estabelecer já ou se preferimos que venham depois ditar-nos esses limites, ao abrigo da defesa da nossa suposta liberdade. Isso é o que sempre aconteceu, ciclicamente. Podíamos ser melhores do que isso, sim. Mas provavelmente não o seremos. E isto vale especialmente para a violência racista e xenófoba que agora, aqui e ali, vai reaparecendo.
II.
Talvez tenha passado despercebido por estes dias, por conveniência e cansaço. Mas, já agora, um anterior primeiro-ministro foi finalmente pronunciado num processo judicial e irá agora a julgamento, ao fim de mais de uma década de ter sido detido pelas televisões e, incidentalmente, pela polícia, ao chegar a Portugal. Pronunciado por três crimes de branqueamento de capitais, não se tendo confirmado quase nada da acusação do Ministério Público em torno da sua conduta.
O facto de as acusações do Ministério Público não serem sequer validadas para julgamento poderia dar que pensar – mas, neste caso e em tantos outros, pode ser o caso de se achar simplesmente que é o processo judicial a funcionar. O problema é que provavelmente não é apenas isso.
É-me francamente indiferente o resultado do processo concreto, como será a quase todos. Sócrates já foi condenado e já cumpriu pena, como todos sabemos. Não conheço José Sócrates, nada me move adicionalmente ao publicitado contra ou a favor dele. Mas, já agora, este detalhe, sucessivo, de acusações desta dimensão serem incapazes de se sustentarem sequer para seguir para um julgamento, ao fim de anos e anos de investigação, é uma de duas coisas, não alternativas: mera destruição de recursos públicos, por falta de gestão ou gestão incapaz dos mesmos; ou ensimesmamento confessional perante uma convicção de base, para a qual não é possível sequer apurar indícios que levem a um julgamento. Nenhuma das opções é boa.
Não faço ideia se houve crimes no caso. Deve haver várias pessoas com a convicção profunda de que sim. O problema, público, é que há outras tantas com uma convicção distinta. Pode dizer-se que isso é o quotidiano da justiça a funcionar. Será e é para isso que servem os julgamentos e os juízes. Mas, na semana em que o sindicato dos procuradores do Ministério Público, veio apresentar uma carta aberta de uma larga maioria de associados, a favor da sua “especialização funcional” e “conciliação da sua vida profissional e vida familiar”, dá alguma vontade de dizer com clareza: nada faz de significativo o Ministério Público por exemplo na área cível genérica, de insolvências ou de execuções, é só acabar com essa excentricidade corporativa e de emprego público tolerante, entre outras. Talvez a concentração na área penal, de família e de defesa de interesses coletivos, desde logo ambientais, fizesse sentido. Mas essa é uma decisão que ninguém vai querer assumir. Já sabemos: mexer com o Ministério Público pode dar dez anos de processo antes do julgamento, todo o ímpeto da CMTV e acabar com qualquer vida futura.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa