Justiça, democracia e escutas

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"Não vale a pena recorrer à Justiça, gasta-se dinheiro e esperamos anos e anos por uma sentença!” “Os telefones continuam sob escuta, vigiados como no tempo da PIDE!”

Todos já ouvimos estes argumentos. Ora, não há Estado de Direito sem Justiça e os infractores sabem-no e contam com isso. Há também a percepção de que há uma Justiça para ricos e outra para pobres, o que desencadeia todo o tipo de populismo. Por outro lado, as regras, leis e prazos não são seguidos pelo próprio aparelho de Justiça e o segredo é violado, com propósitos políticos e para gáudio do voyeurismo populista. E as escutas?! Confidencio que, durante a ditadura, o meu telefone era escutado e, até recentemente, percebi que o meu telemóvel o era também. Não sei a quem me hei-de queixar: à Justiça, ao Ministério Público (MP)?

Então estamos como se estivéssemos no Estado Novo? Claro que não. Revelador de que vivemos em democracia é a possibilidade do exercício da liberdade expressa no sobressalto cívico - bem - desencadeado pelo Manifesto dos 50+50+100, que assinei. O escândalo de escutas sem prazo, enquanto instrumento de investigação de “arrasto”, vazadas consoante timings  políticos em certa comunicação social atrai, por vezes comparações com as escutas telefónicas da PIDE.

Mas é errado, pois a escuta judicial/policial actual só pode ser realizada na fase de inquérito criminal e tem de ser autorizada e prorrogada por um juiz, enquanto a da PIDE era levada a cabo por motivos políticos e sem controlo judicial. Acresce que as transcrições das escutas da PIDE ficavam em geral nos arquivos policiais e não eram em regra vazadas na comunicação social, onde não se expressava qualquer opinião pública, pois era sujeita à Censura.

No entanto, as notas oficiosas na imprensa da própria polícia política cumpriam a função de condenar à partida os adversários políticos do regime, como revelou um protesto, em Dezembro de 1973, dos advogados José Manuel Galvão Telles e Vítor Wengorovius. Estes defensores de dois presos políticos, protestaram contra uma nota da então Direcção-Geral de Segurança (DGS), por representar uma violação do segredo de justiça e pôr em cheque o princípio de independência do poder judicial, revelando o propósito de preparar a opinião pública para o julgamento e para uma condenação.

Durante o Estado Novo, se algo não existiu foi precisamente a independência dos tribunais, nomeadamente dos Tribunais Plenários Criminais (TPC), criados em 1945, pelo ministro da Justiça de Salazar, Manuel Cavaleiro de Ferreira, para julgamento dos “crimes contra a segurança exterior e interior do Estado”. Composto por juízes e procuradores, nomeados segundo critérios de estrita confiança política da ditadura, o TPC funcionava como um apêndice judicial da polícia política e delegado do poder executivo. Cobria as ilegalidades e violências cometidas pela PIDE, na instrução dos processos, aceitava como prova os autos de declarações dos detidos, com recurso à tortura, e julgava segundo os critérios aconselhados nos relatórios da polícia política.

O advogado de presos políticos, Francisco Salgado Zenha enumerou “os passos sucessivos do regime de excepção erguido pela ditadura”, a partir de 1945, mostrando que, numa primeira fase, fora atribuída à PJ e à PIDE a “competência, paralela à dos juízes, para proceder à investigação pré-acusatória de certos delitos”. Numa segunda fase, os poderes da PJ e da PIDE foram ampliados, “por via da restrição dos poderes instrutórios do juiz e da possibilidade de privação da liberdade atingir 180 dias sem qualquer controlo judicial, bem como a atribuição de competências instrutórias ao Ministério Público, agência do Governo, a ele sujeito”. Como o Ministério Público era uma das partes no processo penal, na vertente acusatória, além de ser “um órgão activo da Administração subordinado ao Governo”, ele era “juiz em causa própria” e “um agente do Governo e sujeito hierarquicamente às ordens deste” (Notas sobre a Instrução Criminal, 1968).

A PIDE e a PJ tinham poder para determinar e manter a prisão preventiva por seis meses, sob mero controlo ministerial, mas o prazo podia ser prorrogado, sem que a detenção e a soltura fossem sequer comunicadas ao tribunal ou desse lugar a abertura de processo judicial. Na PJ, o director e os subdirectores exerciam as competências do juiz durante a instrução preparatória relativas à liberdade ou manutenção da prisão preventiva e à aplicação provisória das medidas de segurança, mas essa situação terminou na vigência de Marcello Caetano. Na PIDE - a partir de 1954 - e na DGS - até 1974 - essas competências eram exercidas, a partir do cargo de chefe de brigada.

O tribunal plenário podia ainda aplicar uma “medida de segurança” provisória de seis meses, “aos suspeitos de actividades subversivas”. Ao somar-se aos “seis meses da prisão preventiva”, o preso político ficava detido sem controlo judicial por um ano, ou mais. Os prazos dilatórios eram usados, tanto na prisão preventiva, período em que os detidos políticos eram sujeitos a torturas e cuja duração não contava para a sentença, como através da medida de segurança posterior ao julgamento.

A partir de 1956, esta foi aumentada para “período indeterminado, de 6 meses a 3 anos, prorrogável por períodos sucessivos de 3 anos”, desde que os presos continuassem “a revelar-se perigosos” segundo o critério da polícia política. Isto significava prisão por tempo indeterminado, que o MP e os juízes do Supremo consideravam conforme à Constituição de 1933. A iniquidade da “medida de segurança” que poderia tornar as penas de prisão quase perpétuas foi criticado por muitos advogados, que, contra a politização e policialização da Justiça, defenderam a (re)judicialização desta, ao longo da ditadura.

Em 1972, a Ordem dos Advogados (AO) levou a cabo o seu I Congresso, onde o bastonário, Almeida Ribeiro, apelou a subtrair-se “aos tribunais especiais o julgamento de certos delitos, a abolir as tão criticadas medidas de segurança e reduzir os prazos, excessivamente longos, de prisão preventiva na fase instrutória”, fossem os “réus” “meros suspeitos, ou, pura e simplesmente inocentes”. Mas o máximo que foi conseguido, no novo texto constitucional aprovado no “marcelismo”, foi a diminuição da prisão preventiva, “sem prejuízo da manutenção de um regime de detenção policial especial vigente para a criminalidade investigada pela PIDE/DGS e pela PJ”.

Na chamada metrópole, esse período de detenção começou a contar por inteiro nas penas de prisão e foram “abolidas as medidas de segurança de internamento”, que continuaram no espaço colonial. O que nunca foi conseguido, durante a ditadura, foi a reivindicação da assistência dos advogados nos interrogatórios da DGS, como já era assegurada na PJ no “marcelismo”. Esta polícia política e os tribunais de excepção foram extintos, na sequência do derrube da ditadura, em 25 de Abril de 1974, pelo MFA, em cujo Programa se contaram medidas de modo a assegurar, a curto prazo, a independência e a dignificação do Poder Judicial, bem como do processo penal.

Em Fevereiro de 1975, os advogados José Magalhães Godinho e Manuel João da Palma Carlos requereram um inquérito oficial aos “tribunais fascistas” e pediram a suspensão preventiva dos respectivos juízes, mas esta só ocorreu em poucos casos. Os dois advogados lembraram que a PIDE /DGS frequentemente anunciara aos presos, antes do julgamento, as penas a que seriam condenados e que, muitos juízes haviam funcionado, em concordância com as informações da polícia política. No entanto, a associação sindical dos magistrados judiciais, criada após 25 de Abril de 1974, aprovou uma moção, segundo a qual poucos tinham sido os juízes que haviam colaborado nos tribunais plenários e que o Estado Novo lhes impusera o Conselho Superior Judiciário, nomeado pelo Executivo.

Seja como for, o inquérito, iniciado pelo Conselho Superior Judiciário, não teve continuação. Na segunda metade de 1975, ocorreu na Assembleia Constituinte a discussão dos vários projectos relativos aos tribunais da Democracia, cuja independência foi defendida por quase todos os partidos. Compreende-se que, após anos de ausência de independência da Justiça, esta ficasse integrada na Constituição de 1976, mas pode também ter provocado efeitos perversos.

Cabe aos juristas e ao poder político levar a cabo uma reforma da Justiça e do MP, que termine com as ilegalidades e a falta de escrutínio deste órgão de soberania, autónomo, mas não independente.

Enquanto cidadã e historiadora, preocupa-me o excesso de prisão preventiva, a violação do segredo de Justiça e as escutas telefónicas durante anos. Penso também ser pouco ético, numa democracia que substituiu há 50 anos uma ditadura, que pagava aos seus informadores, haja quem ainda defenda a delação premiada e existirem as escutas telefónicas, como forma de vigilância dos cidadãos.


Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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