Julio

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A revolução portuguesa teve três D: democratizar, descolonizar e desenvolver. Foi este o roteiro da transição política que permitiu ao país reencontrar-se com o mundo. Na última edição do Expresso, Ricardo Costa reage ao terremoto eleitoral com um desvio heterodoxo ao propor que se troque a vetusta consoante por uma vogal. Sugere três E: Estado, economia e exemplo.

Quem sabe se com alguma inspiração lusa, a revolução através da qual Julio Iglesias conquistou o mundo da música honra a tradição da consoante, o expectável num homem com inclinações conservadoras que jogou no Real Madrid e que fez campanha por José María Aznar. Iglesias escolheu o C, que também multiplicou por três: concertos, ceias e cus.

Esta trilogia iglesiana não é menos ambiciosa nem menos trabalhosa do que a portuguesa, mas tem um fulgor festivo e um apelo hedonista sempre ausentes dos grandes desígnios nacionais. Talvez por aqui se expliquem alguns resultados nas urnas. Dizem as más línguas que Julio canta pouco, compõe ainda menos, não toca nada e dança mal. Mas tornou-se o epítome global de latin lover e teve níveis de faturação que superam todas as pequenas economias da zona euro. Quando a ambição, o esforço e a ousadia se juntam não há eleitorado que resista.

Os três C do músico, o mais internacional de todos os espanhóis, constam de um maravilhoso livro de Ignacio Peyró, O Espanhol que Encantou o Mundo. Julio Iglesias, Vida e Época, recém-publicado pela Zigurate. A edição portuguesa merece uma vénia: trouxe Peyró, um dos melhores ensaístas espanhóis contemporâneos, para Portugal; fez uma tradução muito competente; e optou pelo subtítulo “vida e época”, quando na capa da edição espanhola apenas se lê “una vida de Julio Iglesias”.

De facto, é muito mais do que uma história de vida. A prosa de Peyró, que é erudita, irónica e sagaz, rompe com os esquemas habituais da biografia e do ensaio. O livro é, pelo menos para este leitor, um relato rigoroso, culto e divertidíssimo de uma época que vai do tardofranquismo ao triunfo internacional de Espanha no final do século XX, sem esquecer as maleitas deste século XXI.

Passa pela transição democrática, pela consolidação das instituições, pelas elites (as velhas, as novas, e as velhas que passam por novas), pelo turismo de sol e praia (a mais nefasta das exportações espanholas), pelo terrorismo da ETA (o pai de Julio Iglesias foi sequestrado pela organização), pela corrupção na política, pelos costumes de um povo que era pobre e se transformou numa sociedade pujante, cosmopolita, criadora de modas transfronteiriças. Em resumo, o itinerário vital de Iglesias oferece uma pista onde aterrar a história recente de um país que é hoje a 5.ª maior economia da Europa.

Não poucas vezes, o relato da ascensão internacional do cantor toma a forma de metáfora. Mostra como Espanha se converteu em potência mundial. Houve estratégia, determinação e a afirmação de uma marca. Houve também a compreensão de que poder sem recursos não é poder. E houve ainda o cuidado de abraçar outras línguas - embora com habilidade questionável - ao mesmo tempo que se explorou ao máximo o potencial da língua espanhola.

Nas páginas do El País, Íñigo Domínguez defendeu que Peyró é capaz de reescrever a lista telefónica e convertê-la numa leitura amena. Herdeiro da literatura de Josep Pla, Peyró é um virtuoso das letras, com uma inteligência capaz de juntar, sem estridências, citações de Immanuel Kant com as indiscrições carnais do rei da música ligeira. A estrela neste livro é Julio Iglesias, mas é Peyró quem brilha.

Politólogo.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.

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