Julian Assange: o controverso legado de um Prometeu moderno

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Na mitologia grega, Prometeu (“aquele que vê antes”) foi o titã que desafiou a autoridade de Zeus ao roubar o fogo do Monte Olimpo, entregando-o à Humanidade para que esta ultrapassasse o estado de ignorância em que vivia. De maneira semelhante, mas com resultados controversos, Assange, disseminou milhares de documentos confidenciais na internet, trazendo à luz verdades que não se destinavam ao público em geral. Armado com a tecnologia digital do século XXI, o jornalista emergiu no cenário global com a fundação do WikiLeaks, um website que se transformou numa fonte de revelações, abalando governos e instituições militares.

A desobediência de Prometeu a Zeus pode ser interpretada como um nobre acto de resistência ou como mera decorrência de húbris, arrogância ou soberba. Fruto dessa dualidade, o titã simboliza inovação e transgressão; iluminação e rebelião. De forma semelhante, Julian Assange é alvo de percepções distintas: para uns, um herói que revelou corajosamente verdades escondidas, iluminando  recantos sombrios; para outros, uma ameaça à integridade e à segurança do Estado.

Assim como Prometeu, que foi severamente punido por Zeus (o titã foi acorrentado no cume do Monte Cáucaso e castigado eternamente pela sua audácia), Assange enfrentou drásticas consequências pela sua ousadia. Começou por buscar refúgio na Embaixada do Equador em Londres, permanecendo exilado durante sete anos para se esquivar a qualquer tentativa de extradição, seguindo-se cinco anos de prisão em solo britânico.

Num distante eco da tortura mitológica, Assange foi submetido a confinamento solitário extremo na prisão (de segurança máxima) de Belmarsh, condição que desgastou profundamente a sua saúde física e mental.

Nils Melzer, relator especial da ONU para a tortura, chegou à conclusão, após uma investigação oficial, de que o principal objectivo do Caso Assange “não é - e nunca foi - puni-lo pessoalmente, mas sim estabelecer um precedente genérico que desencoraje globalmente outros jornalistas, publicistas e activistas.” Segundo Melzer, a abordagem adoptada contra Assange buscou não apenas silenciá-lo como indivíduo, mas também instaurar um clima de temor e de reticência, reflectindo uma batalha de fundo mais complexa.

Julian Assange chega a Austrália como uma homem livre após ter chegado a acordo com o Governo dos Estados Unidos depois de ter finalmente admitido que violou a Lei de Espionagem dos EUA ao divulgar no WikiLeaks, que fundou, informações secretas que eram vitais à Segurança Nacional do país. FOTO: EPA / Lukas Coch

Em bom rigor, o intricado processo de extradição de Assange não surge qual simples litígio, mas verdadeiro areópago, reminiscente do antigo Tribunal de Atenas, onde se confrontam dois colossos: de um lado a liberdade de imprensa; do outro, a integridade e a segurança nacionais.

Importa sublinhar que este duelo de princípios está contemplado no Artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, preceito que (i) consagra a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou transmitir informações ou ideias sem interferência de autoridades públicas e independentemente de fronteiras, (ii) admitindo que o exercício dessas liberdades possa ser sujeito a certas restrições, desde que estas sejam necessárias numa sociedade democrática, para a protecção da segurança nacional, da integridade territorial ou da segurança pública etc.

Ou seja, o desafio em causa não se confina ao Caso Assange, obrigando qualquer Estado liberal a manter um equilíbrio constante entre a salvaguarda dos valores que devem reger uma sociedade democrática e a imperiosa necessidade de proteger os seus cidadãos.

No âmbito deste complexo quadro jurídico, em Março deste ano foi concedido a Assange o direito de recorrer da decisão de extradição para os EUA. Os argumentos avançados pela equipa de defesa de Assange basearam-se essencialmente nos seus direitos fundamentais, nomeadamente no receio de que, uma vez extraditado para os EUA, Assange pudesse enfrentar acusações adicionais e ser consequentemente sujeito à pena de morte.

Em finais de Junho, o fundador do WikiLeaks selou um acordo com o Governo dos EUA, nas Ilhas Marianas do Norte, declarando ter violado a Lei de Espionagem dos EUA. Encerrou-se assim um capítulo tumultuoso da sua vida, marcado por anos de asilo político, encarceramento e batalhas jurídicas, levantando-se, simultaneamente, questões pertinentes no que toca ao futuro do jornalismo de investigação.

No âmbito de eventos recentes, a figura de Assange emergiu novamente como figura polarizadora: para alguns, Assange permanece como herói destemido que actuou em nome da busca pela verdade; para outros, simboliza um agente do caos que ameaçou levianamente a segurança nacional.

Esta diferença de opinião transpareceu ao longo dos anos entre os próprios jornalistas que oscilaram entre aplausos pela sua coragem (foi-lhe atribuído um Walkley pelo seu contributo meritório para o jornalismo (Outstanding Contribution to Journalism) e críticas pela metodologia utilizada por Assange. O New York Times, por exemplo, reduziu-o conceptualmente, em 2019, a mera fonte, não o caracterizando como jornalista.

Independentemente de como se veja Assange - herói ou vilão - a sua saga lembra de forma potente, numa era de elevadas dificuldades de foro geopolítico, que a verdade tanto pode ser escudo, como espada. Perante ameaças transnacionais, a protecção de certas informações pode configurar-se como essencial para a segurança colectiva. O desafio reside em encontrar um equilíbrio entre pilares democráticos (como a liberdade de imprensa) e a segurança nacional, conceitos que não podemos simplesmente ignorar.

O Caso Assange desafia-nos a reflectir sobre a tensão entre liberdade e segurança, actuando também como catalisador para um debate mais alargado (que bem falta faz) sobre os valores (raízes profundas que nos sustentam) e princípios (as normas que advêm desses valores) que desejamos priorizar e proteger, como indivíduos e como Nação.


Nota: A autora não escreve de acordo com o novo Acordo Ortográfico

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