José Rodrigues Miguéis

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Foi nos começos da República, e eu, de calção, com os sapatos nas poças de água, tratava os primeiros corpo a corpo com a gramática latina e o verbo Amar. A Avenida era então novinha em folha, como o regime. Começava lá em baixo num boqueirão sinistro, um rio de lama onde às vezes havia inundações e gritos, entre ribanceiras e prédios esguios, e ia-se perder ao alto, nas quintas e azinhagas. As casas, modestas e limpinhas, tinham fachadas de azulejo de mau gosto, outras eram pintadas a cor. Havia as “terras”, lotes vagos de barro viscoso onde a gente ia “reinar” e as carroças se atolavam até aos eixos, com muitas pragas dos carroceiros. As árvores eram frágeis e verdes, de mocidade e esperança. Que sossego o desses dias agitados! Isto não era Avenida, era a Rua do Lá-Vai-Um…”

Rodrigues Miguéis (1901-1980) regressa aos escaparates das livrarias, para gáudio dos seus leitores. É um prazer poder voltar à língua certa da grande escrita, que exprime de modo soberbo a vida vivida. Reencontramos Léah e Outras Histórias e Um Homem Sorri á Morte - Com Meia Cara, na Assírio e Alvim, e podemos contar com a indispensável biografia, da autoria de Teresa Martins Marques - Nos Passos de José Rodrigues Miguéis - Uma Biografia Como Um Romance (edições Âncora). A lembrança de uma presença discreta no panorama português (pela distância) obriga a reconhecer uma singularidade especial que o futuro reconhecerá por certo como da maior valia. Se os ideais democráticos que o escritor defendeu tivessem prevalecido, o lugar que teria ocupado dar-lhe-ia maior visibilidade sem sombra de dúvida. À medida que o tempo corre, há personagens que se agigantam, e esse é o caso de Miguéis. Muito jovem, evidenciou-se pelo brilhantismo e pela argúcia. Licenciou-se em Direito na jovem Universidade de Lisboa, foi bolseiro da Junta de Educação Nacional em Bruxelas, onde se graduou em Ciências Pedagógicas. Teve uma importante intervenção na Seara Nova, de que se afastou em 1930, por considerar que não bastariam as ideias para combater a ditadura. Mas foi um seareiro emblemático e um republicano dos quatro costados. Constrangido pela censura e pelo Estado policial, exilou-se nos Estados Unidos em 1935, onde viveria durante quarenta anos. Além de diretor assistente das Seleções do Reader’s Digest, foi professor universitário e tradutor, membro efetivo da Hispanic Society e correspondente da Academia das Ciências. Páscoa Feliz, Léah e Outras Histórias e O Milagre Segundo Salomé são obras fundamentais que demonstram uma qualidade única na escrita e no sentido crítico, capazes de fazer compreender a sociedade autêntica na sua diversidade. “Saudades para Dona Genciana” constitui um exemplo comovedor da cidade em movimento. Ela vivia na Almirante Reis desde o tempo das hortas, e ouvem-se os pregões, o elétrico a ranger nos carris, as tosses aflitivas dos tísicos, a vida e a morte, os protestos e as risadas. Quando o Epaminondas não apareceu, logo correu que estava à sombra no Limoeiro. “Até que um dia, pela primeira vez ao fim de tantos anos, me atrevi a pisar a soleira daquela porta: para ver Dona Genciana. Estava uma sombra, quase irreconhecível, o cabelo todo branco e ralo, os olhos fechados. Entreabriu-os para me ver, agarrou-me a mão com veemência, quis dizer qualquer coisa e as lágrimas correram-lhe pela cara. Daí a dias foi a enterrar”. Assim se desvanecem as memórias.

Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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