Jornalismo cão-que-vê, mas o quê?
Se o plágio por políticos e académicos é notícia e visto como sinal de desonestidade, deficiência de caráter e impropriedade para desempenho de funções públicas, por que se assobia para o ar quando é cometido por jornalistas?
A expressão inglesa watchdog é tradicionalmente usada para descrever a função do jornalismo: porque é suposto estarmos de guarda, atentos, a ver o que se passa. É essa ideia de atenção e de ferocidade, de filar-e-não-largar, que faz o mito do jornalista-herói: o de alguém que só tem um princípio, o da busca da verdade e do bem público, e arrostará os perigos necessários, enfrentará todos os poderes, para estar à altura da missão.
É esta ideia romântica que traz muitos para o jornalismo - espero que seja, pelo menos. Difícil será sobreviver quando grande parte do que se chama jornalismo passa cada vez mais por "picar" o trabalho dos outros, transformando em "notícias" e portanto em cliques/visualizações no online ou "peças" de TV e rádio aquilo que não é mais que copiar e/ou traduzir, sem qualquer valor acrescentado ou sequer verificação. Nunca se usa a qualificação de "plágio" a propósito de tal prática generalizada de pilhagem, na qual bastas vezes nem sequer se cita o original e se chega mesmo a proclamar, com total ausência de vergonha, ser "exclusivo".
Essa falta de respeito que os jornalistas e os órgãos jornalísticos demonstram ter pelo seu próprio trabalho, e que o degrada e embaratece, é, como tanta gente - incluindo eu, várias vezes, nesta coluna - tem apontado, uma incansável corrida para o fundo. Do ponto de vista do que possa ser o futuro da profissão - porque se há de investir em jornalismo aprofundado, que custa tempo e dinheiro, se em segundos aquilo que se publica é "fanado" e está a "alimentar" sites e emissões de quem não pagou um cêntimo por esse trabalho? -, mas também, claro, da ética que deve presidir-lhe.
Aquilo que estamos a ensinar a quem consome jornalismo, como a quem o produz, é que o plágio se transformou numa prática aceitável e até necessária, porque empresas jornalísticas com cada vez menos pessoas "têm de", para "produzir conteúdos", usar os "conteúdos" de outrem.
É também por tudo isto que o caso de plágio admitido pelo Público - e que levou, esta segunda-feira, o jornal a anunciar a suspensão do jornalista que confessada e indesmentivelmente o cometeu (em texto publicado a 18 de setembro) e a abertura de um processo disciplinar* - merece reflexão.
Desde logo, é interessante notar que o plágio em causa diz respeito a uma crónica, algo que não está exatamente no domínio do jornalismo, e a que é reconhecida uma forte dimensão "autoral", e não a uma notícia ou reportagem. Não me lembro aliás de um caso em Portugal no qual se tivesse denunciado um plágio em notícia ou reportagem; parece que só se copia para escrever crónicas. Até porque basta referir numa notícia que aquilo que se reporta é "segundo" o jornal ou rádio ou TV ou blogue tal para se considerar lícita a cópia integral.
A questão é pois não a da cópia mas a da citação: se copias e não citas, então é plágio.
Aqui chegada, é se calhar necessário esclarecer que não estou a querer, com esta comparação, desvalorizar a gravidade do plágio em causa, cuja extensão e desvergonha ficaram claras desde que o jornal decidiu, a 7 de outubro, publicar, em anexo à versão online do texto "original", uma versão colorida, demonstrando a origem das frases e parágrafos e o facto de praticamente não sobrar nada, na dita crónica, de não copiado.
Pelo contrário - o que se passa é que é preciso chegarmos ao ponto de um jornalista copiar um texto quase do início ao fim e assiná-lo como crónica, portanto como "trabalho de autor", para estarmos a falar de plágio no meio jornalístico.
E mesmo assim assistimos a uma acabrunhante tentativa, por parte da direção do jornal e até do próprio Provedor do Leitor, de inicialmente (a denúncia do plágio foi-lhes feita por uma leitora, Joana Fillol, logo a 18 de setembro) fazer passar a coisa como "um erro", "uma falha", resolúvel com um simples pedido de desculpas em rodapé, como se copiar um texto de outra pessoa sem a citar e autores citados por essa pessoa sem, igualmente, os citar, fosse algo que sucede por distração ou negligência - mera falta de cuidado, em suma.
Vimos aliás o Provedor do Leitor do Público, José Manuel Barata-Feyo, a assinar a 8 de outubro uma feiíssima crónica (a segunda dedicada ao caso) na qual, sob o título "A coluna do provedor não é um pelourinho", verberou a leitora denunciante, chegando ao ponto de invocar a ditadura salazarista a propósito da sua insistência no assunto. Fazendo, afinal, da sua coluna o pelourinho da leitora, acusando-a, implicitamente, de "saga persecutória" e "campanha ad hominem" e chegando ao ponto de contabilizar o número de caracteres dos emails que esta lhe enviou.
Quando sabemos da quantidade de notícias que se publicam sobre plágios cometidos por políticos ou outras pessoas com cargos públicos, e do facto de esses plágios serem encarados como evidência de desonestidade e deficiências de caráter e portanto de impropriedade para funções públicas, é bastante difícil de perceber que um jornal e o Provedor comecem por encarar com tal bonomia a revelação de que um dos seus jornalistas o cometeu - e que, como o atesta uma crónica de um Provedor anterior (Joaquim Vieira), para a qual a leitora chamou também, a 26 de setembro, a atenção da direção do jornal, já o tinha cometido antes (ou já tinha sido antes, melhor dizendo, apanhado a cometê-lo).
Igualmente incompreensível é que - à exceção do Correio da Manhã, o que também é curioso, dado o palmarés desta publicação no que respeita a ética e deontologia - nenhum meio tenha entendido a assunção de plágio por um jornalista e pela direção de um jornal como facto merecedor de notícia. Isto quando ninguém se exime de noticiar esses casos quando ocorrem "lá fora", e quando também em Portugal tivemos várias notícias, incluindo até na Lusa e Público, sobre o plágio reconhecido por uma outra cronista, respeitando a uma crónica nas páginas da revista Visão. Ocorreu em 2003, e a cronista, que nem consta ter sido reincidente no plágio, foi - era colaboradora - dispensada.
O que se passou entre 2003 e 2022 para que a descoberta de que uma crónica é um plágio deixasse de ter "valor-notícia"? Será porque, como explanei no início deste texto, se tornou banalíssimo no meio jornalístico copiar o trabalho dos outros? Ou tem a ver com a identidade do plagiador - se nos é simpático ou antipático - e ser ou não um jornalista integrado numa redação?
Não tenho uma resposta satisfatória para estas perguntas, só estranheza e perplexidade. Mas de uma coisa tenho a certeza: o meio jornalístico convive e sempre conviveu muito mal com a ideia de que possa haver quem o observe com a mesma ferocidade com que se arroga observar os outros.
* (nota): Ao dar início à escrita deste texto, li a nota da direção do Público, publicada depois das 17 horas desta segunda-feira, dando conta de que o jornalista autor do plágio fora suspenso e lhe ia ser instaurado um processo disciplinar.
Já depois de fechar a edição em papel do DN, voltei a ler a nota. E notei que a menção ao processo disciplinar desaparecera. Onde antes se lia "com a integral observância dos preceitos legais, ser-lhe-á instaurado um processo disciplinar", está agora "com a integral observância dos preceitos legais, serão adoptadas as demais medidas que ao caso couberem". Não há qualquer referência - como seria curial - a uma tão relevante alteração do texto.
Haverá motivos compreensíveis - até jurídicos - para esta alteração.
Mas, num processo no qual a direção do jornal foi mudando a sua posição, sem assinalar nem datar essas mudanças, da desculpabilização evidenciada perante a denúncia da leitora e as perguntas do Provedor, passando pelo assinalar do plágio no título da versão online da crónica (ao invés de em rodapé, como no início) até ao tom duro da nota desta segunda-feira, com o mesmo plágio a começar por ser apenas "um erro" e "uma falha deontológica incidental" e acabando como "caso grave", esta alteração não assinalada - a ver se ninguém reparou? - é uma triste cereja no topo do bolo.