A santa casa do jornalismo
Não há forma de salvar o jornalismo se quem o consome não só crê ter direito a ele de graça como não o distingue do seu contrário. E não ajuda que o investimento público de emergência não possa distinguir entre projetos sérios e campeões da desinformação e da propaganda porque a regulação simplesmente não funciona.

E uma constante nas redes sociais: de cada vez que se partilha um texto "fechado" (de acesso pago), seja ele noticioso ou de opinião, há gente a protestar: "Queria ler mas está fechado, que pena." Há até quem afirme ter como princípio "não pagar por informação". Na verdade, por princípio declarado ou por outro motivo, a maioria das pessoas não paga: ao contrário do que se passa com a generalidade dos outros bens, incluindo aqueles tão vitais como comida, água ou eletricidade, o jornalismo passou a ser visto como algo a que se tem direito por inerência, uma espécie de bem público a que se exige acesso grátis.
Relacionados
Qualquer jornalista sabe que quando os seus textos estão fechados a probabilidade de serem lidos e de terem algum impacto é muito menor - o que faz com que os próprios jornalistas, porque entendem o seu trabalho como missão e serviço público, prefiram que estejam "abertos". É um paradoxo que está no centro da decadência do setor: se quisermos ser relevantes temos de ser lidos, mas se para sermos lidos temos de ser gratuitos mais tarde ou mais cedo deixaremos de publicar, porque o que fazemos não acrescenta valor à empresa que nos paga, logo, deixa de poder pagar-nos.
Quando podíamos escolher achámos que o jornalismo é uma coisa que cai do céu, que nos aparece na internet de graça. Uma espécie de santa casa. Pois não é: os jornalistas não podem ser voluntários da verdade; têm de comer.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
A este paradoxo acrescem outros. Em primeiro lugar, o facto de serem os próprios meios a contribuir ativamente para a desvalorização do trabalho jornalístico. Quando um texto "fechado" tem informação considerada relevante por outros media é "pirateado": esses outros meios usá-lo-ão como fonte, referida ou não, e publicarão textos - abertos, porque consideram, naturalmente, não serem conteúdo exclusivo - nele baseados, capitalizando os acessos que são assim desviados do produtor original. Resumindo: um jornalista esteve a trabalhar para não ser lido no meio que lhe paga, enquanto outros meios usam o seu trabalho de graça atraindo leitores e portanto "cliques", gerando o "tráfego" que faz subir o meio no ranking do Google e do Facebook e assim atrair publicidade. Muitas vezes sucede até que os outros meios usam a informação e as fontes referidas no conteúdo original para publicar conteúdos que nem o referem - é extremamente comum as TV canibalizarem deste modo os jornais.
Todos os meios fazem isto, "roubando" quer aos produtos jornalísticos nacionais quer aos estrangeiros, porque no novo "modelo de negócio" da net é preciso estar sempre a publicar para "gerar tráfego" e nas redações cada vez mais depauperadas não há forma de estar sempre a produzir conteúdos originais. E isto, que Paulo Pena descreveu já como o jornalismo kebab ("carne cortadinha aos bocadinhos, junta com farinha e qualquer coisa que fica a rodar num rodízio de grelha durante o dia inteiro, cortada às fatiazinhas pequeninas, oferecida como refeição de baixo custo"), é feito confiando que aquilo que se copia está correto - o que é desde logo negar a essência do jornalismo, a qual exige verificação autónoma dos factos e audição das partes atendíveis - e sem que sequer se tenha a decência de pagar uma assinatura aos meios assim espoliados. Cada meio contribui assim, diária e alegremente, para a destruição do valor e da prática do jornalismo e para a ideia de que não se deve pagar por ele.
Se em todos os meios, por este motivo, cada vez mais se publica algo que não é, pelas razões expostas, jornalismo, há aqueles que há muito se notabilizaram na senda da sua corrupção. E com isso, não estranhamente, alcançam maior sucesso do que os que tentam continuar a praticar jornalismo. Porque é que não é estranho? Porque o jornalismo é mais trabalhoso de fazer e de apreender: se tentarmos aprofundar os assuntos e ouvir perspetivas diferentes nada fica simples e simplista, nada se presta tanto à partilha descerebrada, propagandística e trauliteira no Facebook, ao voyeurismo e às indignações raivosas que fazem o sucesso nas conversas de café e nos discursos populistas.

Um exemplo: se quando se fala em "libertar presos" ou em "perdão de penas" por causa da pandemia se olhar para os crimes pelos quais estão condenados os reclusos portugueses e se perceber que há pessoas a cumprir penas até dois anos por não terem pagado multas ou por crimes de perigo abstrato (querendo dizer que não tiveram vítimas nem causaram danos) ligados ao Código da Estrada, como "condução sem carta" ou "condução perigosa" - estes eram 10% dos reclusos em 2017, cerca de 1300 -, isso resulta muito menos retumbante e decerto "vende" muito menos do que afirmar que essa medida vai libertar homicidas e violadores, algo que nenhum jornalista sério e que verifique informação poderia afirmar, já que estava especificamente excecionado na proposta. Mas como é sabido houve em Portugal um diário que fez disso a 10 de abril título de primeira página: "Porta aberta à liberdade de criminosos violentos - Indulto especial permite saída de homicidas e pedófilos".
Este título e o texto que o suporta mereceram um desmentido da Presidência da República e uma queixa do grupo parlamentar do PS à Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Sete dias depois, porém, ouvimos quer a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que é uma instituição tutelada pelo governo, quer o próprio governo anunciar auxílio de emergência para os media e para o jornalismo que inclui, nos dois casos, o diário em causa - o Correio da Manhã. Como o canal de TV do mesmo nome, este diário que passa a vida a publicar, como no caso citado, falsidades e calúnias (declaração de interesses: já o fez sobre mim e foi condenado por isso, em decisão recente do Tribunal Cível de Lisboa da qual recorreu) e a alimentar ódios e ignorância nem por isso deixará de receber uma parte dos fundos públicos cuja disponibilização é feita em nome da "sustentabilidade do jornalismo", da "promoção de fontes de informação credível e validada", da "literacia mediática" e do "combate à desinformação". Será uma das fontes a que Graça Fonseca, ministra da Cultura, se referiu como aquelas "nas quais podemos dar às pessoas a garantia de que podem confiar".
É, é para rir. Mas o facto é que não havia outra hipótese: institucionalmente nada distingue o CM e a CMTV dos outros meios porque institucionalmente os reguladores - a ERC e a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista - nunca usaram o poder que lhes é conferido pela lei para efetuar essa distinção, tornando claro que estes meios violam sistematicamente os deveres a que estão obrigados.
A 10 de abril, a presidência da República acusou o Correio da Manhã de publicar notícias falsas e o grupo parlamentar do PS apresentou uma queixa à ERC contra esse diário; a 17, o governo anuncia apoio aos media em nome da credibilidade do jornalismo e do combate à desinformação que inclui o CM. É para rir.
E não tendo isso sucedido chegámos a esta situação delirante em que se premeia com dinheiros públicos e em nome do investimento no jornalismo e na credibilidade da informação o seu absoluto contrário. Mais até: se bem percebo as regras atinentes à publicidade institucional do Estado e que vão presidir à distribuição dos 15 milhões de euros anunciados pelo Ministério da Cultura para socorrer o setor, esta efetuar-se-á tendo em conta o peso de cada meio no mercado em termos de tiragem, vendas, ouvintes ou espectadores. Logo, o Correio da Manhã, campeão de vendas, receberá um quinhão superior ao de produtos que cumprem as regras e realmente, malgrado erros e debilidades inegáveis, procuram produzir informação credível e validada.
Haverá o dia, e não andará longe, em que o que restará num mercado em que cada vez menos gente valoriza o jornalismo ou sequer sabe distingui-lo como prática e ética serão produtos como o Correio da Manhã. Tabloides cuja influência, como algumas investigações científicas indicam (e se verifica a olho nu), é notória na promoção de líderes e ideias populistas e nos resultados eleitorais; meios de envenenamento e destruição da democracia. Disso seremos todos responsáveis - porque quando podíamos escolher achámos que o jornalismo é uma coisa que cai do céu, que nos aparece na internet de graça. Uma espécie de santa casa. Pois não é: os jornalistas não podem ser voluntários da verdade; têm de comer. E as empresas jornalísticas ou são sustentáveis ou fecham - ou continuam tendo outros meios de financiamento e outros interesses que não o jornalismo. Milagres é que não há.
Jornalista