Jogo de espelhos

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Espelho de memórias, antes do mais. Lembro-me de ver o filme Out 1 (1970), de Jacques Rivette (1928-2016), no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, em 1976, programado por João Bénard da Costa. Era a época gloriosa dos grandes ciclos de cinema na Gulbenkian e, na sua intransigente fidelidade à verdade material das obras, Bénard da Costa exibiu-o de acordo com a conceção original de Rivette. Ou seja: com a duração de 12 horas e 40 minutos.

O título integral do filme é Out 1: Noli Me Tangere. A expressão “noli ne tangere” (“não me toques”) remete para a frase de Jesus Cristo a Maria Madalena, quando esta o descobre depois de ressuscitado — Jesus pede-lhe para não ser tocado, já que ainda não tinha ascendido ao Céu. Noli Me Tangere é tema (e título) de várias obras-primas da história da pintura, nomeadamente de Fra Angelico (c. 1442) e Ticiano (c. 1514). No filme, a sua lógica metafórica poderá enraizar-se no facto de as muitas peripécias, mais ou menos policiais, serem pontuadas pela energia física dos exercícios de um grupo de teatro que ensaia Os Sete Contra Tebas, de Ésquilo.

Se faz sentido dizer que as mais de 12 horas de Noli Me Tangere correspondem à “concepção original” de Rivette, tal decorre do facto de existir uma segunda versão, a que podemos chamar “curta”, ainda que tenha a duração de 4 horas e 22 minutos. Para Rivette, confrontado com as dificuldades, aliás, a impossibilidade de difusão em cinema ou televisão, tratou-se de criar aquilo que considerou um “espectro” do original. Chamou-lhe Out 1: Spectre — é essa versão, justamente, que pode ser vista amanhã em Lisboa, na Cinemateca, a partir das 16h00 (também exibida na Gulbenkian em 1976).

A passagem de Out 1: Spectre faz parte de um ciclo dedicado a Bulle Ogier. Ela integra um admirável elenco em que encontramos, entre outros, Jean-Pierre Léaud, Juliet Berto, Michael Lonsdale e Bernadette Lafont. As suas histórias e ações espelham-se umas nas outras, numa dinâmica em que se vão desvanecendo as relações clássicas de causa e efeito. Tudo acontece em situações de um realismo muito físico que, apesar disso (ou por causa disso mesmo), vai instalando a sensação de uma deambulação sem princípio nem fim, puramente onírica, ambiguamente teatral.

Bulle Ogier filmada por Jacques Rivette: a imagem dentro da imagem.
Bulle Ogier filmada por Jacques Rivette: a imagem dentro da imagem.

Ver ou rever Out 1: Spectre será, por certo, uma experiência que não pode deixar de gerar algum tipo de curto-circuito com a actual situação, contaminada por muitas formas de instabilidade, dos mercados cinematográficos. Mesmo nas suas “abreviadas” quatro horas de duração, Out 1 continua a ser um objecto “impossível” para a maioria das salas escuras, ainda que as “maratonas” de séries disponibilizadas pelas plataformas (e como tal consumidas) possam envolver várias dezenas de horas...

Enfim, não será uma questão meramente métrica. Nem creio que se possa apenas explicar pelas comodidades associadas ao consumo caseiro dos chamados “produtos” audiovisuais. Acontece que o trabalho de Rivette e dos seus pares da Nova Vaga francesa (Godard, Truffaut, Rohmer, etc.) envolveu os mais diversos desafios às regras convencionais do cinema, das estruturas narrativas até à duração dos filmes.

Aquilo que Rivette expõe e propõe em Out 1 tem tanto de epopeia literária (aliás, inspira-se também na História dos Treze, de Balzac) como de puzzle expositivo que se aproxima da estrutura de um seriado (Noli Me Tangere está mesmo dividido em oito partes, com durações que variam entre os 90 e 100 minutos). Afinal de contas, quando se diz que os autores da Nova Vaga revolucionaram o cinema, importa acrescentar que nada do que fizeram dispensa alguma transformação do próprio espectador. A duração de um filme é apenas um detalhe, já que o essencial passa pelo desejo daquele que contempla o ecrã — como num espelho.

Jornalista

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