Já cá não está quem falou. Dolores Madrigal (1934-2024)
Quando se pesquisa o seu nome pela Internet fora, o que o Google nos devolve é uma personagem da Disney, do filme Encanto, de 2021, mas a história de Dolores Madrigal está longe de ser uma fita da Disney, e menos ainda um filme de encanto.
No más hijos por vida, fizeram-na assinar num papel, sem que ela percebesse bem o que tal queria dizer, nem o que isso significava em concreto. Em 2018, as autoridades de Los Angeles pediram-lhe desculpa pelo mal feito e, quatro anos depois, no hospital onde esteve internada ergueram um monumento discreto - a ela e a todas as mulheres como ela, Dolores Madrigal, o rosto mais conhecido da batalha contra a vaga de esterilizações levada a cabo nos Estados Unidos nos alvores da década de 1970, quando a América e o mundo inteiro viviam apavorados pela sobrepopulação do planeta.
Em 1970, Richard Nixon instituíra a Commission on Population Growth and the Future of America, presidida por John Rockefeller III e integrada, entre outros, por Pat Buchanan, Daniel Patrick Moynihan e John Ehrlichman (este, aliás, cumpriria pena pelo Watergate), um grupo de homens, só de homens, que deveria pronunciar-se sobre questões tão variadas como o controlo de nascimentos, o uso de contraceptivos e o aborto, a educação sexual na América ou os movimentos migratórios.
Rockefeller interessava-se pelo tema desde há décadas e, em 1952, fora um dos fundadores do Population Council, uma organização financiada pela sua família para o estudo da demografia e o controlo de nascimentos, que hoje detém a patente de vários dispositivos anticoncepcionais. Em finais da década de 1960, o neo-malthusianismo do pós-guerra ganhara um novo vigor com as previsões catastrofistas de livros como Famine 1975!, de Paul Paddock e, sobretudo, The Population Bomb, de Paul Ehrlich, logo convertido em best-seller no ano em que saiu, 1968.
Mais tarde, já depois de Nixon ter instituído a comissão presidida por Rockefeller, o Clube de Roma lançaria um novo grito de alarme, com o célebre relatório Os Limites do Crescimento, de 1972. Às preocupações de sustentabilidade económica juntavam-se agora outras, ecológicas e ambientais (o livro-bomba de Ehrilch, não por acaso, fora escrito por sugestão do presidente do Sierra Club, uma das principais organizações ambientalistas da América).
Um bicho da terra tão pequeno, como diria Camões, Dolores Madrigal foi apanhada no meio deste gigantesco turbilhão, que assolava os corredores do poder e as grandes academias, e, conjuntamente com centenas de outras mulheres de origem hispânica, tornou-se vítima colateral - e inocente - de um movimento que, partindo de bases científicas e de previsões credíveis, cedo se transformou numa cruzada impensada que tudo levava à frente, como é frequente suceder na América.
Dolores Nuñez Arriola nasceu a 8 de Abril de 1934 em Villa Purificación, um pequeno povoado do estado mexicano de Jalisco, e em 1965 emigrou para a América, estabelecendo-se na zona de Los Angeles. Em 1971, casou com Orencio Madrigal, mecânico, e começou a trabalhar como auxiliar escolar, após ter aprendido noções rudimentares de inglês em aulas nocturnas. Em 12 de Outubro de 1973, depois de ter dado entrada de urgência no Hospital de Los Angeles, dilacerada por dores de parto, os médicos e as enfermeiras convenceram-na, e ao marido, a autorizar ser esterilizada, com o argumento, que se viria a revelar ser falso, de que morreria se acaso tivesse mais filhos. Só percebeu que tinha sido esterilizada um ano depois, quando as rádios começaram a falar do que sucedera às mães latinas da Califórnia, na sequência das denúncias feitas por um médico do hospital, o dr. Bernard Rosenfeld.
Seguiu-se uma intensa batalha judicial, em que Dolores e outras mulheres mexicanas tentaram provar, sem sucesso, que os fundos federais canalizados para o hospital de Los Angeles o tinham motivado a levar ao extremo as obsessões eugénicas da Casa Branca. Ainda assim, o caso Madrigal v. Quilligan, de 1978, que mobilizou toda a comunidade hispânica dos Estados Unidos, não só despertou a opinião pública para questões como o consentimento informado dos pacientes para a prática de actos médicos, como levou à adopção de medidas mais apertadas nesse domínio. Nada disso, porém, devolveria a Dolores a possibilidade de ter mais filhos, como tanto queria e sonhava.
Num percurso clássico, o marido entrou em depressão e afundou-se no alcoolismo, morrendo em 1994, e os dois filhos rapazes, Oren e Sérgio, caíram na marginalidade junto dos gangues de chicanos da Costa Oeste. Dolores mudou-se para Las Vegas, encontrou conforto na fé católica, mas nunca perdeu o sentimento de revolta pela tremenda injustiça que sofrera.
Sobre ela e sobre outras como ela fizeram-se doutas teses de doutoramento, documentários de sucesso, como No Más Bebés, de 2015, houve pedidos de perdão, monumentos compungidos. E, agora, evocações mediáticas, como esta, que por alturas do Natal falam de um natal roubado, em que Dolores foi vítima, não personagem da Disney.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.