Já cá não está quem falou/1 - John Kinsel Sr. (1917-2024)
Houve tempos, cruéis tempos, em que diziam que um índio bom era um índio morto e, de facto, este foi um índio e está hoje morto, tendo levado a bondade ao expoente máximo, pois, além de herói de guerra e pilar de um povo, foi exemplo e lenda para uma nação inteira.
No passado dia 19, o chefe tribal Buu Nygren ordenou que todas as bandeiras da Reserva de Window Rock, no Arizona, a capital dos Navajo, fossem colocadas a meia-haste até ao pôr-do-sol de dia 27, em memória de um dos filhos mais queridos daquela nação, nascido em Cove, na fronteira com o Novo México, em data inominada do ano de 1917, com o nome de Kinłichíi’nii, sendo filho de Tábąąhá, neto materno de Naakaii Dine’é e neto paterno de Bit’ahnii.
Nunca conheceu o pai, morto quando ele era criança, e foi internado aos 6 anos na Fort Boarding School, onde lhe deram o nome de John Williams. Por mal saber inglês, acabou vítima de severos maus-tratos por banda de professores e colegas, e a escola, essa, seria encerrada em 1927, para dar lugar a um hospital para tratamento do tracoma e da tuberculose, doenças que à época dizimavam atrozmente os Navajo, entre os quais o irmão mais novo de John.
Entretanto, a sua mãe re-casara-se com Roy Kinsel, um homem de Twin Lakes, Novo México, com filhos já crescidos, cujo apelido ele adoptou, e a família mudou-se para Lukachukai (que significa “manchas de juncos brancos”, na linguagem Navajo), nas imediações das assombrosas Montanhas Ch’óshgai, onde o avô de John tinha uma vasta propriedade, com mais de 1000 cabeças de gado e muitos e muitos cavalos.
John pediu ao avô para frequentar a St. Michael Indian School, fundada em 1902 por Katherine Drexel, um rica e piedosa herdeira, depois freira, que João Paulo II canonizaria em 2000. Aí concluiu o 8.º grau do liceu e aí se converteu à fé católica, do qual foi um ardente devoto até morrer. Depois disso, foi internado em Fort Wingate, de onde fugiu para, vá-se lá saber porquê, fazer a Route 66 a pé, na mira de chegar a Santa Fé.
Apanhado, seria de novo internado, desta feita em St. Catherine, uma escola industrial para rapazes índios também fundada por Katherine Drexel, onde se formou.
Com o deflagrar da Segunda Guerra, John, juntamente com cerca de 500 Navajos, foi integrado pela Marinha dos EUA nas unidades de Code Talkers, falantes de línguas cuja obscuridade ou dificuldade permitia iludir na perfeição as máquinas de desencriptação do inimigo e, assim, transmitir ou receber mensagens ultrassecretas a uma velocidade inaudita, técnica usada na Europa na Primeira Guerra (no Somme, por ex.) e depois levada ao Pacífico, na Segunda. A utilização de línguas diversas, por vezes codificadas, como o navajo, o mohawk, o comanche, o cri, o cherokee, o basco ou o húngaro foi um inestimável trunfo dos Aliados, que permitiu salvar milhares de vidas.
No pós-guerra, John regressou a Lukachukai, e aí teve um reencontro comovente com o avô: sem dizer uma palavra, abriu o maço e deu-lhe um cigarro, que o velho aceitou em silêncio, desfeito em lágrimas.
Depois, construiu a sua cabana, casou-se, teve filhos, formou família, e, durante anos, nunca falou a ninguém, nem sequer ao seu povo e aos amigos, das missões secretas que desempenhara nas batalhas épicas de Iwo Jima, Guadalcanal ou Okinawa, entre outras.
O papel dos Code Talkers só começou a ser reconhecido em finais da década de 1960, quando, em 1968, os documentos sobre as suas operações foram desclassificados; e, em 1982, Ronald Reagan fixou 14 de Agosto como Navajo Code Talkers Day, ainda hoje celebrado. John Kinsel Sr. converteu-se então numa das figuras mais veneradas da sua comunidade e, com o prestígio que alcançou em toda América (v.g., o seu testemunho de vida foi registado para a posteridade pela Biblioteca do Congresso), pugnou inúmeras vezes pelos direitos ancestrais dos Navajo e de outros povos nativos do país, sem deixar de se afirmar como cidadão dos EUA e de exibir com orgulho as muitas e gloriosas medalhas que tão justamente recebeu.
Segundo informou o filho ao Navajo Times, John Kinsel Sr. morreu tranquilamente durante o sono no passado dia 19. Agora só restam dois code talkers Navajo, Thomas Begay e Peter MacDonald, ambos na casa dos 90. Em Lukachukai, 65% da população vive abaixo do limiar da pobreza.
Escreve de acordo com a antiga ortografia.