Isto parece mais 2016 que 2020
O que definirá a eleição marcada para daqui a uma semana, mas que, na verdade, já começou há muito?
Tudo - mesmo tudo - poderá ainda acontecer nos próximos sete dias. Mas a ideia dominante é a de que, nesta reta final, Kamala derrapou e Trump adquiriu ligeiro favoritismo.
Na terceira nomeação presidencial de Donald Trump, 2024 parece mais semelhante a 2016 (quando bateu Hillary) do que 2020 (quando perdeu para Biden).
Donald Trump ganhou em 2016 com plataforma ultranacionalista, antiglobalista, antimultilateralista, populista e identitária. Apelou ao sentimento de receio de perda de poder por parte da maioria branca em regressão, perante a ascensão das diferentes minorias.
Em 2020, Biden tentou ser o herdeiro da “grande tenda” que é composta por segmentos e sensibilidades muito diferentes (esquerdistas, moderados, independentes, minorias sexuais, raciais, até republicanos descontentes), mas todas com um forte propósito - travar a reeleição de Donald Trump.
Houve ainda o fator pandemia: Trump, que ‘flirta’ com movimentos de supremacia branca e capta grupos negacionistas e conspirativos (QAnon), sem nunca assumir compromisso com eles, jogou com o sentimento crescente de cansaço em relação à ameaça pandémica, enquanto Biden pôs foco total em posição responsável, de respeito pela ciência e pela evidência, guiando-se pelas preocupações sanitárias.
Há quatro anos, a visão do democrata destacou-se por ser mais sensata e cientificamente correta. A agulha na Economia, apontada por Trump, teve peso - mas não resolveu. O modo pouco empático como lidou com o sofrimento de milhões de americanos com a pandemia - num constante jogo de negação ou desvalorização da evidência estatística - fê-lo perder o apoio das mulheres brancas instruídas, dos mais velhos e dos eleitores suburbanos.
Ao mesmo tempo, o estilo “terra a terra” de Joe Biden - ele próprio nascido em Scranton, Pensilvânia - deu-lhe tração para segurar o Midwest, ganhando na comparação com a antecessora democrata, a “elitista” Hillary Clinton.
2020 não foi 2016. Mas… será que 2024 poderá ser uma repetição de 2016 e não de 2020?
Duas visões sobre o que pode ser a América
A eleição de 2020 colocou em confronto duas visões do que (ainda) é e pode ser a América: aberta ou fechada ao mundo; diversa ou homogénea; globalista ou nacionalista; pelo Acordo de Paris ou a continuar num misto de negacionismo ou exclusão egoísta do combate às alterações climáticas.
Esteve quase tudo em jogo: a resistência do sistema eleitoral e judicial americano; o futuro do sistema bipartidário, pelo menos do modo como o conhecemos nas últimas décadas.
Mas o desfecho de há quatro anos pode não ser equivalente ao de 2024. O falhanço da reeleição não acabou com o trumpismo.
Os 75 milhões de votos são impressionantes e têm valor real na sociedade, na política e no ruidoso ecossistema mediático norte-americano. A vergonhosa declaração feita pelo então Secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, dias antes do 6 de janeiro de 2021, algures entre a negação e ameaça (“vai haver uma transição tranquila para uma segunda Administração Trump”), anunciou o que estaria para vir nas semanas entre a eleição e a tomada de posse.
Donald Trump, neto de um alemão e filho de uma escocesa, que esteve casado com uma checa e tem uma mulher eslovena, enriqueceu fazendo negócios com 18 países diferentes, mas escolheu para ideias fortes da tomada de posse “comprem americano, contratem americano, América primeiro, América primeiro”, prometendo reforçar fronteiras e reprimir a imigração. O chapéu que usava na campanha a dizer “Make America Great Again” era... ‘Made in China’.
Os EUA são uma extraordinária democracia, que em 2016, de forma livre e soberana, decidiu eleger um presidente que ataca a democracia. As decisões têm consequências. O momento de transição em que esse corpo estranho teve de sair foi um processo doloroso e demorado. Tão demorado que, quatro anos depois da derrota para Biden, Trump surge bem colocado para derrotar Kamala Harris e regressar à Casa Branca.
Os EUA depois do “6 Jan”
Há um aiC e um diC na História da democracia americana: antes da invasão do Capitólio e depois da invasão do Capitólio.
O ato inominável de 6 de janeiro de 2021 ficará como marca inegável, indisfarçável e inapagável da pior Presidência americana das últimas nove décadas. As instituições, depois de atacadas, têm de fazer-se respeitar.
Sim, pareceu estranho ver Trump a ser julgado por impeachment três semanas depois de ter saído da Casa Branca. Sucede que Trump foi presidente até 20 de janeiro, não até ter perdido as eleições. Um crime de incitamento à insurreição cometido por um presidente ficaria sem punição apenas porque aconteceu nos dias finais do mandato? Não faria sentido.
Quase 80% dos republicanos acreditam que “as eleições de novembro foram roubadas”, alinhando assim na tese mentirosa de Trump sobre uma suposta “fraude eleitoral”. Como sobrevive politicamente depois disso?
Uma parte do eleitorado americano olha para os EUA, quase quatro anos depois. Trump, nos primeiros dias da sua Presidência inaceitável, lançou o caos nos aeroportos com a Travel Ban baseada numa premissa falsa, mas sexy para o seu eleitorado: barrar o acesso a solo americano de cidadãos de sete países muçulmanos (Irão, Iraque, Somália, Iémen, Síria, Sudão e Líbia).
Sucede que nos quatro anos Trump o perigo real não foi o extremismo muçulmano (que se sabe existir e foi autor do 11 de Setembro de 2001): foi o terrorismo doméstico, branco. Viu-se isso a 6 de janeiro de 2021, na invasão do Capitólio, muito por culpa da legitimação dada pelo então presidente dos EUA a grupos como os Proud Boys, os Oath Keepers, os Three Percenters ou os Bogaloo. Mas já se tinha visto também nos ataques a Congressos estaduais no processo de contagem dos votos ou nas ameaças à secretária de Estado do Michigan e ao secretário de Estado da Geórgia - ou também no assustador plano para raptar a governadora democrata do Michigan, Gretchen Whitmer, depois de Trump escrever no Twitter “Liberate Michigan!”.
Estranhos regressos
Os EUA podem voltar a ter como presidente alguém que mente sem hesitar para chegar aos seus interesses imediatos. Que olha para o domínio do ciclo mediático como um fim e não olha para os valores políticos com grande relevância. Que funciona por feelings e não por princípios fundados em informação complexa e pensada. Que tem um uso da linguagem parecido com um adolescente despreocupado: acha tudo “brutal”, “desastroso”, “vergonhoso”, “escandaloso”.
Quando um presidente dos EUA fala assim, as palavras no discurso político correm o risco de perder a sua medida exata. E essa dispersão gera uma perda de valor do próprio discurso político. Com Obama, vimos no presidente dos EUA um exemplo de eloquência aliada à consistência ideológica. Com Biden, apesar das dificuldades da idade, verificámos um regresso da decência ao topo do poder. Com Trump, poderemos voltar a assistir à vitória do imediato e do ilusório. Barack Obama é racional, profundo e escreveu dois livros sobre A Audácia da Esperança e a as origens do seu pai queniano. Joe Biden faz tudo para deixar um legado de defesa da Democracia, em tempos de ascensões autocráticas. Donald Trump é um entertainer que fez a sua ascensão mediática em reality shows.
Sinais dos tempos.