Investir e desinvestir em responsabilidade
Os constituintes “investiram” na responsabilidade civil do Estado, levando-a ao texto da lei fundamental e rompendo com a visão do “Estado irresponsável”. Foi preciso, porém, esperar mais de três décadas até que fosse aprovado um regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado de raiz democrática.Durante todo esse período, vigorou, na matéria, um diploma com a assinatura de Salazar - o que tem de considerar-se um longo capítulo de “desinvestimento” em matéria de responsabilidade. Mas não é esse o ponto mais estridente que as anomalias que se sucedem no funcionamento dos serviços públicos evocam.
A proposta de lei que a Assembleia da República aprovaria em 2007 veio regular o ressarcimento dos danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa.Entre muitas inovações,introduziu no nosso direito positivo uma solução avançada noutras democracias: o Estado e as demais pessoas colectivas de direito público passavam a ser responsáveis quando os danos devessem ser atribuídos a um “funcionamento anormal do serviço” (isto é,quando “atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos”). É claro, hoje, o alcance desse passo.
As opções propostas obtiveram largo consenso parlamentar, mas foi surpreendente a reacção de Belém. O anterior Presidente devolveu o decreto à AR, valorizando no seu argumentário o acréscimo das despesas do Estado e o impacto no funcionamento dos tribunais. Com a sua mensagem,contudo, só o grupo parlamentar do PSD alteraria o voto anterior e o quadro parlamentar da época garantiu o futuro do novo regime, com ligeiras alterações. Mesmo assim, ao promulgar, Cavaco Silva tornou expresso que só não recorria de novo ao veto por não esperar que o partido maioritário mudasse de posição.
O tempo revelaria que não procediam as razões alegadas. Da entrada em vigor da lei não decorreu o “profundo impacto” sobre o funcionamento dos tribunais que era invocado. Estudos disponíveis sobre a jurisdição administrativa sublinham o crescimento limitado da procura entre 2008 e 2013 e até, a seguir, um período de decréscimo: uma década depois da aprovação da lei, o aumento em relação a 2004 não iria além dos 40%.
Nada sugere que o novo regime tenha sido um dos factores críticos que levou esses tribunais, em especial a partir de 2013, a uma situação que justificou sucessivas recomendações europeias. E dos últimos relatórios do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais só pode retirar-se não serem elevados os pagamentos aos lesados a título de indemnização, quer em número, quer em valor global. De tal modo que só se justifica hoje mencionar esse veto esquecido para ilustrar que, tal como nos serviços públicos, em matéria de soluções legais responsabilizantes há momentos em que se investe - e outros em que revela o sinal contrário.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico.