Imigrantes e gatinhos

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Trump escala na mentira dos “cães e gatos”, fala em gansos que desaparecem do lago de Springfield.

Porquê?

Springfield, Ohio, tem 15 mil haitianos numa pequena cidade de 58 mil, a 72 quilómetros de Colombus, capital estadual. Há, objetivamente, uma exploração do medo através de falsas acusações. Coloca toda a gente a falar do tema da imigração ilegal, que é o que lhe interessa.

O problema é a profunda irresponsabilidade que é ver um ex-presidente dos EUA, que deseja voltar a sê-lo, a projetar um discurso de ódio dirigido a uma comunidade, com os riscos sérios que isso implica. As consequências já se notaram nas últimas horas: ameaças de bomba em Ohio após Trump dizer que imigrantes comiam cães e gatos, referindo a chegada de milhares de migrantes haitianos à cidade com uma população predominantemente branca e operária, que desencadearam evacuações de escolas e edifícios governamentais.

Trump promete “a maior deportação da história”, que se iniciaria em Springfield, Ohio. Estamos perante o regresso da cartilha “carnificina americana”, inspirada em Steve Bannon, que levou Trump à Casa Branca em 2016. Mais tarde, Donald escalou a história dos “cães e gatos” e falou no “desaparecimento de gansos do lago de Springfield” e relatou supostas “violações de jovens sodomizadas por imigrantes ilegais”.

Com Trump atrás nas sondagens, e a fazer tudo para disfarçar a derrota pesada que teve no debate, isto só vai piorar.

Kamala atingiu com distinção os três grandes objetivos

Correu ainda melhor do que se esperava a Kamala, correu ainda pior do que se esperava a Trump. A democrata surgiu segura, sólida e muitíssimo bem preparada. Dominou a narrativa, levou a discussão para o que mais lhe interessava, tinha as respostas na ponta da língua. Encostou Trump às cordas no 6 de janeiro, na defesa da democracia, na relação com os líderes internacionais. Conseguiu que economia e imigração não fossem temas dominantes. Descolou-se elegantemente de Biden, colocou-se como “a candidata do futuro”, ela que é vice-presidente em funções e atirou Trump para “um passado a que não queremos voltar”. E tinha preparadas frases certeiras, que entregou sempre com assertividade: “Trump foi despedido por 81 milhões de americanos”, cortando assim uma narrativa disparatada de Donald, quando voltava a dizer que “não podia ter perdido a eleição de 2020 se tinha tido 75 milhões de votos”.

Kamala fez quase tudo o que era preciso fazer. Nem precisou de corrigir a mentira repetida de Trump de que “Biden tem a maior inflação da história” (nos anos Reagan a inflação era quase de 20%). Kamala provou ser a candidata mais preparada, a que está em melhores condições de defender a Democracia. Assumiu-se como “vinda da classe média”, a única que tem um plano para ela. E afirmou-se como “tendo um único cliente, o povo”, em contraponto com um Trump que tem “um plano para ele e para os amigos bilionários a quem se prepara para voltar a baixar os impostos”.

Trump teve momentos de alguma irritação, sem saber como desmontar a liderança de Kamala e chegando a puxar de uma estratégia que servia quando era Biden o candidato. Só que já não é.

Harris mostrou Trump como inaceitável e apresentou-se como a solução que defende a Democracia e garante a conciliação. Retirou dúvidas sobre a sua própria capacidade em situação sem rede.  Provou que estar a “esconder-se” ao escrutínio não era fragilidade, era apenas estratégia e que pode ser diferente, para melhor, de Joe Biden (“A New Way Forward”) - até ao debate parecia candidata melhor que Biden 2024, mas pior que Biden 2020; a partir de agora pode projetar a ideia de poder ser ainda melhor que Biden 2020.

Devemos identificar duas dicotomias que Harris soube explorar: futuro vs. passado: Kamala, vice em funções, conseguiu colocar-se como a candidata do futuro, avisando para o perigo do “espécie de incumbente que nos ia fazer regressar ao passado”. Normal vs. inaceitável: enquanto Kamala surgiu preparada, responsável e consistente; Trump insistiu em irresponsabilidades como ter sido roubado em 2020 e desvalorização do 6 janeiro de 2021.

Trump e o pecado do excesso de confiança

O excesso de confiança levou Donald a abdicar de preparação a sério; a vitória de goleada de Kamala foi a vitória da preparação. Trump ainda não processou a derrota de 2020 e ainda não processou que já não é Biden o seu adversário. A 27 de junho, Trump ganhou largamente a Biden pela comparação - mas já não tinha estado muito bem; agora confirmou-se que Trump 2024 também já está mais velho que em 2016 e 2020.

Kamala soube interpretar o que significa que 61% do eleitorado diga que é preciso uma “mudança” (daí ter-se descolado o mais possível da herança Biden). Mas mudança numa continuidade democrática; Kamala mostrou que é possível manter forte a defesa da Democracia e que regressar a Trump em “modo vingança” seria rotura na própria democracia. 

Marcou muitos pontos ao lembrar que Trump incitou a multidão no 6 de janeiro de 2021, negou a derrota evidente, defende 15 milhões de deportados. A história mostra-nos que ganhar um debate não garante ganhar a eleição (Hillary Clinton, Mitt Romney e John Kerry que o digam).

Entrámos no desafio dos detalhes

As duas primeiras sondagens nacionais feitas pós-debate dão um crescimento imediato a Kamala Harris. Tanto o estudo da Reuters/Ipsos, como o do Morning Consult identificam cinco pontos de vantagem à democrata (50/45 e 47/42), o valor mais elevado até agora na diferença entre Kamala e Trump.

Uma diferença de cinco pontos no voto popular garantiria, com quase toda a certeza, a vitória à democrata no Colégio Eleitoral (Biden venceu em 2020 por 4,5%). Falta saber como estará nos Estados decisivos pós-debate - mas nas últimas indicações pré-duelo da Pensilvânia apontam para avanço de Kamala no Wisconsin (52/48, Marquette, 28 ago a 5 set) e na Carolina do Norte (50/47, Quinnipiac, 4 a 8 set), um empate na Pensilvânia (50/50, CBS News, 3 a 6 set) e vantagem Trump na Geórgia (Quinnipiac, 4 a 8 set).

O debate correu muito bem a Kamala na comparação com Trump e ao encostá-lo às cordas, mas terá faltado algum detalhe que muitos queriam ver na democrata. Se o desafio é dar-se a conhecer aos americanos que querem saber mais sobre ela, então esse trabalho começará verdadeiramente agora.

O tour de Kamala pelos Estados decisivos, que termina este domingo e teve foco muito especial na Pensilvânia, pode ajudar a prolongar este novo fôlego democrata. Harris e Walz estão a apostar nos condados rurais da Pensilvânia, explorando pontos como a proposta de ampliação de programas para ajudar as comunidades rurais a aceder ao financiamento federal, ao mesmo tempo que expande o financiamento para pequenas empresas e outras ajudas.

Kamala tentará reforçar os laços, para já limitados, com a agricultura e os eleitores das pequenas cidades. “As comunidades rurais são essenciais para o sucesso e o caráter da nossa nação.”

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