Idealizar o passado é também deturpá-lo

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A genuinidade da alimentação tradicional do passado, a produção e consumo locais e a sua inocência quanto a compostos, como conservantes, hoje idealizadas, também significavam fomes cíclicas, variando com o clima ou com a mão-de-obra, doenças desnecessárias e um enorme aborrecimento de sabores.

Em linha com esta visão, a idealização da Saúde no passado, nesse tempo sem plástico, sem indústria ou sem tabaco e sem açúcar, supostamente sem doenças não- -transmissíveis, em que só se ouviam passarinhos a chilrear... Só? Bem, exceto quando a morte sobrevinha, o que ainda parece suceder, mas, à época, com grande frequência e em idades em que hoje nos chocaria, já para não falar da mortalidade infantil ou das doenças associadas às condições de trabalho.

O mesmo pode ser dito quanto à segurança e à criminalidade. Tudo o que sabemos sobre este falso país de brandos costumes, onde as portas podiam ficar destrancadas à noite, na idílica expressão com que esbofeteamos o presente, é que a criminalidade até ao século XX era uma criminalidade bastante violenta e razoavelmente numerosa (homicídios, infanticídios, crimes sexuais, ofensas corporais), tempo em que se abandonavam recém-nascidos na rua e se compravam silêncios e submissões diversos.

E a expressão mais suavizada dos roubos e dos furtos teria mais que ver com a falta de coisas para roubar, hélas, nessas casas de portas sem tranca (seria bom de ver qual o preço e o acesso efetivo a uma fechadura com chave em meados do século XIX), do que propriamente com a pureza de espírito dos nossos antepassados.

O discurso sobre a corrupção e seus associados também, por vezes, vive nesta fantasia do tempo. É quase fácil o convencimento de que o empobrecimento moral e a ductilidade ética em funções públicas é uma nova e triste consequência da democracia, do multipartidarismo, dos eleitos pelo método de Hondt... E, nisso, esquecer o ambiente de grande e pequena corrupção que trespassava quase todas as instituições do Estado Novo, da cabeça aos pequenos poderes funcionais, aceite e tolerado, quando não justificado, pela razão de Estado e pelo paternalismo sábio que cabia às lideranças.

Já para não falar no outro nível de corrupção, a da censura política e da construção e destruição de carreiras profissionais e de vidas por delitos de opinião, que tão normalizado estava, corporizado pelo seu vasto exército de inspetores, funcionários e por esse tipo específico de “portugueses de bem” que são os delatores.

E, mesmo antes, convém recordar que a maior obra pública feita em Portugal até à época, na segunda metade do século XIX, a construção da Penitenciária de Lisboa (1863-1885), foi também, com ironia, o maior escândalo de corrupção até então verificado e ocupou tribunais e jornalistas durante anos a fio.

A lista poderia continuar. A tentação de idealizar o passado, como ferramenta de crítica sobre o tempo presente, é frequente. Até porque, nisto dos argumentos que usam o tempo, há sempre alguém que está em perda no debate, que é quem já cá não está para dizer afinal como foi. Daí que seja especialmente útil esse conhecimento, com as técnicas que temos para o trabalhar. A memória não é apenas um adereço discursivo, tem de ser conhecimento funcional para um discurso público mais maturo, menos sujeito às pressões, legítimas e ilegítimas, das conjunturas, mais livre.

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