Há países em que todas as mulheres podem ser refugiadas? Infelizmente, sim

Publicado a

Quando trabalhava no Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, conheci a história de várias mulheres encarceradas. A que mais me marcou foi a de uma mulher iraniana, detida no EECIT de Lisboa, que fugira para a Europa para escapar a um crime de honra. Estava há mais de um mês naquela camarata sobrelotada do EECIT de 2019: deixara filhos para trás e encontrava-se num estado psicológico devastador, entre automutilações e crises de gritos. Aguardava-a, pelo menos, mais um mês a viver naquelas condições, até o SEF decidir se poderia beneficiar do estatuto de refugiada, que não fora pensado para estes casos.

O ano de 2024 veio representar um passo gigante no que toca à proteção de mulheres que fogem de violência de género em alguns países. Numa marcante decisão de outubro, relatada pelo juiz português Nuno Piçarra, o Tribunal de Justiça da União Europeia veio reconhecer que, em alguns países, o simples facto de se ser mulher é sinónimo de sujeição a perseguição - ou pelo Estado, ou por privados -, pelo que os Estados-membros têm o dever de lhes dar asilo.

Duas requerentes de asilo do Afeganistão invocavam que, após um tempo a viver na Áustria, não podiam voltar ao seu país de origem: seriam vistas como “ocidentalizadas” e, por isso, perseguidas. O Tribunal do Luxemburgo concordou. Considerou que a falta de proteção contra violência de género, a imposição da burka, a restrição da liberdade de movimentos, as limitações ao acesso a cuidados de saúde, ao trabalho, à educação e a exclusão da vida política, constituíam, no seu todo, elementos de perseguição contra mulheres naquele país.

Todo o sistema está assente numa espécie de “apartheid de género” a que nenhuma mulher escapa. Assim, qualquer mulher que daí venha, é prima facie tida como perseguida, pelo que à partida terá direito de asilo.

Esta decisão é marcante, pois a partir de agora estas mulheres não necessitam de demonstrar que os seus direitos estão a ser violados, em específico, para terem asilo na UE. Fazem parte de um grupo - ser mulher no Afeganistão - que, por si só, implica violação de Direitos Humanos e a necessidade de proteção internacional.

Ao comemorarmos o Dia da Mulher, é bom relembrar o impacto que esta decisão tem - e que se junta a outras que já davam proteção a mulheres que invocavam ser vítimas de violência de género noutros países.

No entanto, para os direitos daquelas mulheres, esta decisão continua a ser um pequeno curativo num corpo dilacerado com múltiplas fraturas expostas. O direito de asilo não compensa tudo: muitas das mulheres não logram sair daqueles países, porque não conseguem, ou porque não podem trazer os filhos. Se este avanço no Direito dos Refugiados é, indubitavelmente, um progresso europeu, ele não deixa de ser um sinal de que noutros sítios, outrora prósperos e vibrantes, a situação das mulheres atingiu níveis de desumanidade dignos de distopias saídos da imaginação de Atwood.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Investigadora do Lisbon Public Law

Diário de Notícias
www.dn.pt