Homicídio mediático e a lenta agonia da presunção de inocência

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O veredicto que absolveu - ainda sem trânsito em julgado - o único arguido no mediático caso do desaparecimento e presumível homicídio de Mónica Silva, de forma desprezível e desumanizada apelidada de “grávida da Murtosa”, constitui, para já, o culminar de uma “novela” da vida real narrada à medida da massificação das audiências de alguns media. Depois da condenação pública durante meses a fio, o desfecho judicial expõe as fragilidades de uma democracia que convive impávida com a condenações públicas antecipadas, amplificadas por coberturas mediáticas implacáveis e profundamente cruéis para vítimas e arguidos, que fazem das audiências a única coisa que verdadeiramente interessa e tudo justifica. A absolvição em 1.ª instância do cidadão Fernando Valente, por falta de provas conclusivas sobre a presumida morte da vítima, coloca no centro da discussão o “assassinato” do seu nome e reputação e a lenta agonia da presunção de inocência. Desde o desaparecimento da vítima, em outubro de 2023, que a narrativa mediática em torno de Fernando Valente foi-se tecendo com certezas condenatórias antecipadas, de juízos formados, antes de produzidas as provas e feito o seu juízo crítico no único local onde o mesmo pode ter lugar - nos Tribunais. Durante meses a fio, as “investigações” jornalistas construíram um perfil do arguido que, na opinião pública, o encaixou sem apelo, nem agravo, no papel de homicida premeditado, que com especial censurabilidade, assassinou a sangue-frio a companheira grávida, para não assumir a sua gravidez. A linguagem utilizada em muitas reportagens, fez naufragar num verdadeiro tsunami a sempre frágil presunção de inocência, rapidamente transmutada em presunção de culpa na opinião pública. Expressões como “o suspeito de matar”, “presumível homicida” e a constante associação do seu nome a detalhes da acusação que o Ministério Público viria a apresentar, solidificaram uma imagem de Fernando Valente como um homem frio, calculista e sem escrúpulos, sem direito a defesa. A vida pessoal do arguido foi dissecada, as suas relações pessoais e profissionais completamente devassadas e a sua imagem irremediavelmente destruída, independentemente do que viesse a ser provado no judiciário. O fenómeno reflete uma tendência crescente de prevalência esmagadora e absoluta da liberdade de imprensa sobre o direito fundamental à presunção de inocência, consagrado no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa e sobre os direitos da personalidade, como o bom nome, a reputação e a dignidade dos cidadãos visados em processo-crime, quantos em seguida absolvidos judicialmente dos crimes hediondos pelos quais foram julgados e condenados na praça pública. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que deveria desempenhar um papel crucial no controlo de abusos de imprensa e na salvaguarda dos direitos dos cidadãos, garantindo o justo equilíbrio entre a liberdade de imprensa e o respeito pelos limites legais e deontológicos, assiste a todo este espetáculo deprimente sem qualquer intervenção publicamente conhecida. A necessidade de alimentar ciclos noticiosos de 24 horas, a competição pelas audiências e a pressão por respostas rápidas em casos de grande comoção social, criaram um terreno fértil para o julgamento desumanizado na praça pública. Neste tribunal improvisado, as provas são substituídas por indícios feitos certezas em “investigações” jornalistas, o contraditório é substituído pela narrativa implacável da “verdade” premonitória e a sentença é ditada nas aberturas noticiosas sem direito a recurso, transformado em caprichoso pecado eivado de excesso garantístico. A questão que se impõe nos casos como de Fernando Valente é a seguinte: quem repara o dano irreversível na reputação de um cidadão que, à luz da Constituição e da lei, foi considerado inocente? A justiça, no seu ritmo próprio e com as necessárias exigências probatórias, absolveu-o dos crimes de que era acusado, mas pelos quais foi inapelavelmente condenado na memória coletiva, moldada por meses de narrativa incriminatória. “O bom nome, para um homem ou uma mulher, meu senhor, é a joia mais imediata das suas almas.” (Otelo, de William Shakespeare). É imperativo encontrar os limites e o justo equilíbrio entre o dever de informar e o respeito escrupuloso pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos visados em processo penal.

Advogado e sócio fundador da ATMJ - Sociedade de Advogados

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