Homenagem ao nosso Eça

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Sobre a viagem de Eça de Queirós ao Egito, que resultou na publicação de quatro reportagens no DN em janeiro de 1870, disse-me um dia Alfredo Campos Matos: “É aí que se dá a grande viragem do Eça fantasista para o Eça observador da realidade. A realidade geográfica, nova, que ele vê avidamente… ele vê o Egito avidamente e já com conhecimento teórico, faz uma revolução na escrita dele.”

Autor de Dicionário de Eça de Queiroz, A. Campos Matos, que era como assinava os livros, foi a maior autoridade no escritor até morrer há dois anos. A nossa conversa ocorreu tinha ele já 91 anos, por ocasião dos 150 anos da viagem de Eça que, no regresso a Lisboa, resultou numa grande reportagem sobre a inauguração do Canal do Suez.

Homenagem ao nosso Eça
"É no Suez que se dá a grande viragem do Eça fantasista para o Eça observador da realidade"

Foi a amizade com Ramalho Ortigão que levou Eça a conhecer Eduardo Coelho, o nosso fundador, e a frequentar a redação do jornal no Bairro Alto, Lisboa, numa Rua dos Calafates que hoje se chama Rua do Diário de Notícias.

O primeiro diretor do DN era de Coimbra, mas não frequentou a universidade e fez carreira como tipógrafo antes de ser jornalista. Era também dez anos mais velho do que Eça, nascido na Póvoa de Varzim e bacharel em Direito. Mesmo assim “tornaram-se muito amigos”, garantiu-me A. Campos Matos, numa entrevista publicada em finais de 2019.

Do duo, ou melhor do trio, pois é obrigatório incluir Ramalho Ortigão, nasceu a ideia de O Mistério da Estrada de Sintra, um folhetim escrito a quatro mãos e depois publicado no jornal no verão de 1870 como se de um crime real se tratasse, um arriscado golpe de marketing de Eduardo Coelho, que bem merece ser considerado o pai do jornalismo moderno em Portugal.

“Atenção a uma coisa: aquele mito de que O Mistério da Estrada de Sintra tinha sido escrito alternadamente e em que um enviava textos para o DN e o outro enviava a resposta, isso é um mito, porque não se pode fazer isso. Eles preparavam muito bem os textos e iam enviando paulatinamente os textos já prontos, não era uma troca: ‘Olha agora é o Eça e, depois, o Ramalho vem a seguir e responde’. Eram alternados, mas com uma distância que permitia a um saber o que é que o outro já tinha para publicar”, esclareceu-me A. Campos Matos, um pouco para desilusão de quem, jornalista, habituado a escrever em cima do momento, sempre imaginou que Eça e Ramalho faziam o mesmo, no caso deles tão rápidos como talentosos, sob o olhar ansioso de Eduardo Coelho.

Eça tinha 24 anos quando foi o enviado do DN à inauguração do Suez. Faltavam ainda alguns anos para obras como O Crime do Padre Amaro, A Tragédia da Rua das Flores ou Os Maias, mas a genialidade adivinhava-se nos artigos que publicou na primeira página do jornal. Fica aqui um excerto de um deles, em jeito de homenagem do DN ao grande escritor que hoje vai ser transladado para o Panteão Nacional:

“Naquele dia 17, da inauguração, Port Said, cheio de gente, coberto de bandeiras, todo ruidoso dos tiros dos canhões e dos hurras da marinhagem, tendo no seu porto as esquadras da Europa, cheio de flâmulas, de arcos, de flores, de músicas, de cafés improvisados, de barracas de acampamento, de uniformes, tinha um belo e poderoso aspeto de vida. A baía de Port Said estava triunfante. Era o primeiro dia das festas. Estavam ali as esquadras francesas do Levante, a esquadra italiana, os navios suecos, holandeses, alemães e russos, os iates dos príncipes, os vapores egípcios, a frota do paxá, as fragatas espanholas, a Aigle, com a imperatriz, o Mamondeh com o quediva, e navios com todas as amostras de realeza, desde o imperador cristianíssimo Francisco José até ao quediva árabe Abd el-Kader. As salvas faziam o ar sonoro. Em todos os navios, empavesados e cheios de pavilhões, a marinhagem, perfilada nas vergas, saudava com vastos hurras. De todos os tombadilhos vinha o vivo ruído das músicas militares. O azul da baía era riscado em todos os sentidos pelos escaleres, a remos, a vapor, à vela: almirantes com os seus pavilhões, oficialidades todas resplandecentes de uniformes, gordos funcionários turcos afadigados e apopléticos, viajantes com os chapéus cobertos de véus e couffins, cruzavam-se ruidosamente por entre os grandes navios ancorados; as barcas decrépitas dos árabes, apinhadas de turbantes, abriam as suas largas velas riscadas de azul. Sobre tudo isto o céu do Egito, de uma cor, de uma profundidade infinita. À noite a cidade iluminava-se, enchia-se de músicas, de festas populares. As esquadras tinham as suas armações e cordagens cobertas de fios de luz. Durante toda a noite os fogos-de-artifício, numa grande linha de terra, faziam, sobre o céu escuro, grande bordado luminoso”.

Perdeu-se um belo jornalista, ganhou-se um enorme romancista. Eça, o nosso Eça, do DN, mas sobretudo de Portugal.



Diretor adjunto do Diário de Notícias

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