O cortejo saíra do Cais das Colunas, passou pelo Rossio e rumou, por caminhos diversos dos de hoje (ainda não fora aberta a Avenida Almirante Reis) ao Cemitério do Alto de São João, onde a urna seria depositada num jazigo onde estava a Condessa de Resende, sogra do escritor. O elogio fúnebre foi lido por Magalhães Lima e a entrada do jazigo foi ornamentada com dálias, porque, segundo o DN, o funcionário do cemitério soubera que eram essas flores as preferidas do escritor.Fossem as personagens de Eça à cerimónia de deposição dos restos mortais do seu criador no Panteão Nacional e é bem possível que Dâmaso Salcede não dispensasse o hábito de Cristo e a Condessa de Gouvarinho tratasse de cobrir o bonito rosto com um austero véu de viúva. Mas o que se vai passar na manhã desta quarta-feira, à chegada do que foi José Maria Eça de Queirós ao Panteão Nacional de Santa Engrácia, em Lisboa, terá outros protagonistas, como o Presidente da República, o presidente da Assembleia da República, o primeiro-ministro ou o presidente da Fundação Eça de Queiroz, Afonso Reis Cabral, também ele escritor e trineto do homenageado. .Dalila Rodrigues: “Faz sentido evocar Eça tanto em Tormes como em Lisboa” .Culmina, assim, um longo e polémico processo desencadeado em dezembro de 2020, quando a Fundação Eça de Queiroz lançou o repto às autoridades competentes. Em janeiro seguinte, a Assembleia da República aprovou por unanimidade uma proposta do PS para “conceder honras de Panteão Nacional aos restos mortais de José Maria Eça de Queirós, em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa.” .Assim teria acontecido em 27 de setembro de 2023, mas, dias antes, uma providência cautelar, interposta por um conjunto de bisnetos do escritor, impediu que tal acontecesse. A 20 de junho passado, o Supremo Tribunal Administrativo considerou que não há qualquer vontade expressa por Eça sobre o local de sepultamento, dissipando assim velhos mitos como o de este não querer ser sepultado em Lisboa ou uma não menos vaga preferência por Aveiro ou Tormes. O Tribunal deu ainda como provado que uma larga maioria de bisnetos apoiava a trasladação para o Panteão..Mas esta está longe de ser a primeira viagem dos restos mortais do escritor. A primeira ocorreu logo em 1900, poucas semanas após a morte, ocorrida em Neuilly sur Seine, França, a 16 de agosto desse ano, e o DN foi o único jornal português a cobrir a autêntica saga que, em meados de setembro seguinte, foi a trasladação do corpo para solo nacional. Um exclusivo que o jornal reivindicava, nesta crítica à restante classe jornalística nacional: “Devemos ter como jornalistas apenas aqueles que vivem inteiramente ou quasi inteiramente da sua pena, e não qualquer intérprete de hotel, mudando mais facilmente de nome do que de camisa.”.O esforçado repórter começa o seu trabalho a 11 de setembro, ainda em terras de França, escrevendo: “O cadáver de Eça de Queirós vai acompanhado até o Havre pelo ministro de Portugal, sr. Thomaz Rosa; Bartolomeu Ferreira, secretario da legação portuguesa, Domingos de Oliveira Pinto de Sousa e arquiteto Alexandre Soares.”.Antes de a urna ser embarcada para Lisboa no navio da Marinha portuguesa África, foi rezada missa “em sufrágio da alma do ilustre extinto”, a que compareceram, entre outros, José Luciano de Castro, presidente do Conselho de Ministros em várias ocasiões durante os reinados de D. Luís e D. Carlos. Entretanto, em Lisboa, o Governo mandara revestir de sanefas pretas o Arco da Rua Augusta e de laços pretos os candeeiros da iluminação pública, encomendando a decoração do carro funerário a Rafael Bordalo Pinheiro..Mas o que mais impressionou o repórter do DN, nesse 17 de setembro de 1900, foi a enorme adesão popular ao desfile: “Muitas horas antes do que se indicara para o desfilar do cortejo, já as ruas por onde ele ia passar se encontravam repletas de povo. Algumas ofereciam um aspeto curioso, pelas variegadas cores de que se compunha essa massa compacta, em que predominava o elemento feminino.”.A multidão de leitoras enlutadas estendia-se ainda às janelas e portais dos estabelecimentos, já que, como nota o repórter, “era grande o número de senhoras que aguardavam o momento do desfile, com uma ansiedade verdadeiramente justificada.”. O cortejo saíra do Cais das Colunas, passou pelo Rossio e rumou, por caminhos diversos dos de hoje (ainda não fora aberta a Avenida Almirante Reis) ao Cemitério do Alto de São João, onde a urna seria depositada num jazigo onde estava a Condessa de Resende, sogra do escritor. O elogio fúnebre foi lido por Magalhães Lima e a entrada do jazigo foi ornamentada com dálias, porque, segundo o DN, o funcionário do cemitério soubera que eram essas flores as preferidas do escritor..Mas, no momento da entrada no jazigo, verificou-se que as argolas laterais, demasiado grandes, impediam a urna de entrar na última morada. Como o serralheiro de serviço só estava disponível no dia seguinte, houve que deslocar o caixão para a capela do cemitério, à espera do providencial serrote..Assim esteve Eça no jazigo lisboeta até 1989. A 13 de Setembro desse ano, os principais jornais do país publicavam um anúncio, em que se podia ler: “A família de José Maria de Eça de Queirós informa os amigos e admiradores do escritor, que será rezada missa por sua intenção, no dia 15 do corrente, pelas 9 horas na Basílica da Estrela, após a qual os restos mortais seguirão para o Cemitério de Santa Cruz do Douro, Tormes, onde repousará junto dos seus.”.A 16 de setembro, o DN relatava o que acontecera na véspera: “‘Aqui descansa entre os seus José Maria Eça de Queirós’, é a frase que ficou gravada no local onde agora repousam os restos mortais do autor de Os Maias, onde foram também depositadas, sem quaisquer cerimónias, as ossadas de dois filhos do escritor, António e Alberto.” Juntavam-se, assim, às dos seus outros irmãos, Maria Eça e José Maria..Mais adiante, o repórter escrevia: “Na trasladação de Eça do Alto de São João, de Lisboa, para o campo santo de Santa Cruz do Douro, por decisão da família, deveria ser algo íntimo. Mas não foi. A figura pública do escritor, que o comandante Homem de Gouveia, representante do Presidente da República, destacou como um dos portugueses mais conhecidos e o segundo dos escritores nacionais mais traduzidos no mundo, não o poderia consentir.”Os mesmos argumentos levam agora Eça de Queirós de Tormes de volta a Lisboa. É sabido, como escreveu Mário de Sá-Carneiro, no poema Fim, que “a um morto nada se recusa.” Mas sobre os desejos fúnebres de Eça só sabemos que preferia dálias..Homenagem ao nosso Eça