Hipocrisia ou distracção?
A imprensa francesa é, por estes dias, porta-voz de um escândalo que afectará uma das famílias mais ricas de França, a família Mulliez.
Devo dizer, antes de mais, que não conheço, nem tenho qualquer relação com esta família, excepto a que decorre de, como muitos portugueses, ser cliente de alguns dos estabelecimentos comerciais de que são donos e operam em Portugal. A saber, Auchan, Decathlon e Leroy Merlin.
O escândalo resume-se em poucas linhas. Segundo a AFP terá apurado, a Decathlon terá como seu fornecedor, em regime de subcontratação, uma empresa que utiliza mão-de-obra uigur, que trabalha em regime de trabalho forçado.
Ora, não tendo eu razões para duvidar da veracidade da notícia, nem meios para a confirmar ou contraditar, tenho, no entanto, razões para perguntar: os que agora se indignam são hipócritas ou distraídos?
Basta percorrer muitos dos nossos centros comerciais e ver os preços de alguns dos bens para perceber que não podem ser o resultado de trabalho com direitos.
Casacos a 30 ou 40 euros, camisas a menos de 10 euros, sapatos a 30 euros? Acham que quem os fabricou, ou quem produziu as matérias-primas que neles se incorporam, foram trabalhadores com direitos e justamente remunerados?
Ou vejam o preço de alguns brinquedos e perguntem às vossas consciências se aqueles brinquedos não resultarão do trabalho de crianças que nunca foram, nem serão, meninos?
E também tiveram todos as televisões desligadas quando passam as reportagens sobre a mineração de terras raras, mineração que permite a cada um de nós ter, a preços baixos, telemóveis de última geração?
A Europa, sobretudo a Europa, tudo trocou em nome do seu bem-estar.
Começou por trocar a produção de bens de investimento e de consumo, por prestações de serviços de “alto valor acrescentado”.
A seguir abdicou da sua capacidade de se autossustentar e autorregenerar, optando por viver à custa de dívida, pública e privada, sem limites e, portanto, insustentável.
Achando incómodo ser mãe e pai de crianças que choram e às quais é preciso mudar a fralda, educar, levar à escola e ajudar a crescer, optou pela “comodidade” de importar população, até que, “aqui d’el rei”, que nos estamos a descaracterizar.
E agora, hipócrita ou distraidamente, parece abdicar do que lhe resta - a honra, os princípios, os valores, a herança iluminista que dela fizeram o farol que iluminou a marcha da Humanidade contra a barbárie.
Sim, não é com indignações vazias e bacocas que o mundo se equilibra. É com acções.
Têm a Europa e os europeus rendimentos para pagar o preço justo de bens e serviços produzidos por trabalhadores adultos, livres e com direitos?
Arrisco a dizer que não, pelo que continuaremos distraidamente a fazer de conta e a esquecer aquilo que sempre nos diferenciou - o respeito e a defesa da dignidade da pessoa humana.
Advogado e gestor
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico