Harris ou Trump – O dilema enfrentado pela Índia e pelos eleitores americanos de origem indiana

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O que há em comum entre países como a Irlanda, o Suriname, Portugal? Todos eles foram liderados por cidadãos de ascendência indiana.

O sucesso da diáspora indiana nunca foi uma grande questão na Índia. Não só porque estes líderes já não eram cidadãos da Índia, mas também porque eles e outros cidadãos de ascendência indiana nunca foram vistos como uma ferramenta política para promover a política governamental do país.

No entanto, a comunidade indiana no estrangeiro está a tornar-se uma força política desde que o governo de direita liderado por Narendra Modi, do Partido Bharatiya Janata (BJP), chegou ao poder. O BJP faz parte do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), a fonte da ideologia de direita Hindutva. O RSS tem afiliados e organizações inspiradas nele nos EUA e noutras partes do mundo.

Organizações como o Vishwa Hindu Parishad of America (VHPA, ou Conselho Mundial Hindu da América), Sewa International, Hindu Swayamsevak Sangh (HSS) (que é inspirado no RSS) e outras têm tido um interesse ativo na sociopolítica americana com o pretexto de promover a sua versão do hinduísmo e da cultura hindu. Ao fazê-lo, impulsionam e protegem a agenda e as políticas nacionalistas coloridas Hindutva do governo do BJP.

Os encontros de Modi com os seus apoiantes durante as suas viagens oficiais ao estrangeiro exibe o potencial bloco eleitoral dos cidadãos de herança indiana. Possivelmente, para mostrar o seu comando sobre os eleitores americanos de origem indiana, Narendra Modi proclamou o seu apoio a Donald Trump com ‘Abki ki bar Trump Sarkar’ em 2020 nas eleições contra Joe Biden. Isto foi não só uma gafe diplomática, como a derrota de Trump diminuiu a tão proclamada influência de Modi.

A sigla ABCD (American Born Confused Desi) é um rótulo utilizado para descrever os americanos de herança indiana incapazes de conciliar a sua ascendência com a sua nacionalidade e cultura americanas. Hoje, muitos destes ABCD enfrentam outra questão.

Até que ponto a questão indiana é indiana?

As eleições presidenciais norte-americanas em curso são entre Kamala Harris, do Partido Democrata, e Donald Trump, do Partido Republicano.

A mãe de Harris é da Índia, do estado de Tamil Nadu, no sul, para ser mais preciso. O companheiro de equipa de Trump é JD Vance. Os pais da mulher de Vance, Usha Chilukuri Vance (nascida Usha Bala Chilukuri) são naturais do estado indiano de Andhra Pradesh. Usha era uma democrata registada, mas mudou para o Partido Republicano.

Muitos argumentariam que Usha é mais indiana do que Kamala, uma vez que o pai de Kamala é jamaicano. Por isso, os indianos gostariam que Trump ganhasse. Assim, o Vice-Presidente Vance e Usha estariam a uma curta distância da pessoa mais poderosa do mundo e teriam a oportunidade de entrar na Casa Branca em 2029. JD Vance e Usha casaram-se em rituais de casamento cristãos e hindus e deram nomes indianos aos filhos.

No entanto, o atual Partido Republicano e os seus apoiantes são xenófobos preconceituosos. Houve consternação entre muitos republicanos quando Trump escolheu Vance como seu companheiro de candidatura. Nick Fuentes, um conhecido supremacista branco, disse: “Será que esperamos mesmo que o tipo que tem uma mulher indiana e deu ao filho o nome de Vivek apoie a identidade branca?”

JD Vance parece perceber que o seu casamento com uma americana de ascendência indiana pode ser um obstáculo político. Vance, nos primeiros dias da sua campanha, disse: “Olhem, eu amo muito a minha mulher. Eu amo-a porque ela é quem é. Obviamente, ela não é uma pessoa branca, e fomos acusados, atacados por alguns supremacistas brancos por causa disso. Mas eu simplesmente… amo a Usha.”

Assim, embora os eleitores indianos e americanos de herança indiana possam estar à procura de um indiano no Partido Republicano, o partido não pretende capitalizar isso. Por outro lado, Kamala falou sobre as suas raízes indianas e africanas.

Curiosamente, Trump escolheu o ex-democrata Tulsi Gabbard para fazer parte da sua equipa de transição. Sabe-se que Tulsi tem ligações próximas com o RSS. A inclusão de Tulsi pode sugerir um entendimento tácito entre a campanha de Trump e as afiliadas norte-americanas do RSS que eles não desejam tornar público.

Assim, a escolha é entre uma indiana cujo marido pertence a um partido racista que a quer esconder e uma candidata indiana-jamaicana.

A questão político-religiosa

Para além da situação difícil que a ancestralidade levanta, há a questão política.

A Índia e muitos indianos apoiaram Trump durante a sua candidatura e presidência em 2021, pela sua intolerância antimuçulmana. Esta pode ainda ser uma das principais razões para o seu apoio a Trump.

Uma organização chamada Hindus for America First (Hindus pela América Primeiro) apoiou Trump, afirmando que “Ele é pró-Índia, Harris seria desestabilizadora”. Trump partilhou também a notícia de que o Capítulo da Coligação Hindu Americana na Geórgia está a apoiar a sua candidatura. No entanto, Trump declarou recentemente que a Índia era uma “abusadora” dos acordos comerciais Índia-EUA. Ao mesmo tempo, disse que o primeiro-ministro Modi era “fantástico”.

Deverão Índia e estes eleitores diferenciar entre a aparente posição suave de Trump em relação a Modi e a sua posição anti-Índia? Quem seria melhor para a Índia enquanto país?

Curiosamente, Trump anunciou que se iria encontrar com Modi durante a recente visita deste aos EUA. No entanto, Modi não se encontrou com Trump nem com Harris. Esta decisão mostra o dilema. 

De acordo com um inquérito da Pew Research a 199 hindus americanos, verificou-se que 61% dos inquiridos eram democratas ou de tendência esquerdista. Noutra sondagem, a Pew Research refere que “uma maioria de 68% dos eleitores indianos-americanos registados identifica-se ou inclina-se para o Partido Democrata”. Existe uma dicotomia. De acordo com o Fundo Carnegie para a Paz Internacional, “as opiniões políticas dos indianos-americanos são mais liberais nas questões que afetam os Estados Unidos e mais conservadoras nas questões que afetam a Índia”. Isto sugere que, embora os indianos possam ser membros de grupos conservadores do Hindutva que promovem o Hindutva nos EUA, isso não afeta o seu comportamento eleitoral nos EUA. Os americanos de herança indiana dão importância ao seu bem-estar nos EUA. De acordo com a Pew Research de 2023, quando questionados se regressariam à Índia, apenas 33% dos indianos disseram que sim. A maioria referiu “estar próximos dos entes queridos” como motivo do regresso. 

Dois certos resultam num erro

Os liberais de todo o mundo têm objetivos comuns. Não é o caso da direita. Os americanos de herança indiana que defendem o Hindutva e apoiam Trump ignoram o facto de que apenas 47% dos conservadores têm uma opinião favorável da Índia, em comparação com 57% dos liberais, de acordo com a Pew Research. Mais importante ainda, Trump e o movimento MAGA fizeram da imigração ilegal uma importante plataforma eleitoral. De acordo com a Pew Research, os EUA têm 725 mil indianos indocumentados, que constituem a terceira maior nacionalidade de imigrantes ilegais. 

Se Trump chegar ao poder, há todas as hipóteses de serem deportados. Permanecendo na imigração, o Presidente Trump reforçou as regras dos vistos H1-B e propôs barreiras à autorização de trabalho para os cônjuges dos titulares de vistos H1-B. Isso impactou muitos indianos. Trump indicou que deseja fazê-lo novamente, mas estas questões, e a sua aproximação aos racistas e aos evangélicos cristãos, não impediram os americanos de herança indiana de o apoiarem. O conservadorismo preconceituoso e a postura antimuçulmana de Trump ultrapassam tudo o resto. 

Estarão os americanos de ascendência indiana e a Índia realmente a enfrentar um problema? Seria míope que os americanos de herança indiana sacrificassem o seu bem-estar e o sonho americano e votassem em Trump para apoiar o governo de direita da Índia, em vez de votarem pela sanidade na América e, por extensão, no mundo. A Índia tem muito a perder se o seu governo apoiar Trump com base na sua islamofobia.

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