Guerra à burocracia

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Numa coincidência promissora, a “guerra à burocracia” regressa às prioridades governativas quando se cumprem 20 anos sobre a “empresa na hora” (DL n. 111/2005) - uma inovação que tornou possível a constituição de sociedades num único balcão e de forma imediata, em tempo inferior a uma hora. Inseria-se ela, então, num conjunto de medidas de simplificação e desburocratização no relacionamento do Estado com as empresas, ao longo do seu ciclo de vida, e também com os cidadãos. E foi relevante para a execução ulterior desse programa a grande aceitação pelos destinatários e o reconhecimento internacional, incluindo um 1.º lugar na categoria de “redução da burocracia”, em concurso patrocinado pela Comissão Europeia.

De par com a desmaterialização processual, foi longa a lista das medidas que então se seguiram: informação empresarial unificada, documento único automóvel, eliminação da obrigatoriedade da escritura pública, casa pronta, registos online, certidão permanente, eliminação de publicações de actos relativos a sociedades no jornal oficial e da obrigatoriedade dos livros de escrituração mercantil, associação na hora, nascer cidadão... são apenas exemplos retirados da área da Justiça. Além de papéis, muitos milhões de actos desnecessários, deslocações e esperas foram, nessa etapa, suprimidos.

Com a criação do programa Simplex, no ano seguinte, processos de simplificação e desburocratização foram-se expandindo por várias áreas da actuação pública. Os resultados, atingidos sob vários governos, não colocaram mal Portugal - em certos domínios até bastante bem - na comparação com outros Estados da UE e da OCDE. Mas não haja ilusões: das culturas, práticas e poderes que souberam resistir no terreno até à velocidade da evolução tecnológica, do deficit na capacitação pública ao activo contributo da própria produção europeia (só pela anterior Comissão, presidida pela actual presidente, foram promovidos 6300 actos normativos - mais de 3 por dia!) são múltiplos os factores que constantemente moldam um campo onde cresce o que há para fazer.

Não há, pois, fundamento objectivo para a surpresa revelada por alguns perante este regresso da luta contra a burocracia como prioridade governativa. E quem preste atenção à agenda europeia não pode deixar de nele ver a transposição para o plano interno do realce concedido ao tema, neste semestre, pela Comissão Europeia. Na sequência do Relatório Draghi, a Comissão não só partiu em campanha sob a bandeira “Simplificar e acelerar”, levando muitos a falar num “choque de simplificação”, como adoptou já - controversas, diga-se - iniciativas legislativas (pacotes Omnibus). Em relação a Portugal, emitiu mesmo uma recomendação onde é valorizada a queixa respeitante à carga administrativa sobre as empresas: a isso não pode deixar de ser sensível quem toma posse como primeiro-ministro.

Modelos constitucionais como o nosso subtraem-nos ao risco de, no próprio dia da posse, ver assinada uma ordem executiva como aquela que, nos EUA, criou e lançou o DOGE em “guerra contra a burocracia”. Mas será bom que se colha, em concreto, a vantagem daí resultante - para o que se espera agora do Governo que especifique objectivos, medidas e calendários no programa que vai apresentar à AR.

Jurista, antigo ministro.

Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico

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