Guerra regional de consequências globais

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A eliminação de Nasrallah e a entrada no sul do Líbano deram um novo fôlego político interno a Netanyahu – e a tão poucos dias do primeiro aniversário dos atentados de 7 de outubro, o foco deixou de estar na incapacidade israelita de recuperar os reféns que se mantêm sob cativeiro do Hamas.

Na véspera do ataque em massa do Irão a Israel, o primeiro-ministro russo, Mikhail Mishustin, esteve em Teerão e encontrou-se com o presidente, Masoud Pezeshkian. 

A parceria militar Rússia-Irão está a aprofundar-se e é pouco crível que o responsável russo não tenha ficado a par da ação que os iranianos viriam a realizar horas depois. O Irão é peça fundamental para que os houthis do Iémen recebam mísseis russos, para atacar interesses de Israel e também de EUA e Reino Unido no Mar Vermelho. Na sexta-feira, as forças norte-americanas do CENTCOM lançaram ataques contra 15 alvos do Iémen em zonas controladas pelos rebeldes Houthis.

O escalar do conflito no Médio Oriente já implica o envolvimento, ainda que indireto, das grandes potências: os EUA – que por enquanto acreditam que Israel ainda não decidiu como irá retaliar – estarão a ser arrastados pelo governo de Netanyahu para uma guerra regional em que Washington ficará sempre do lado de Israel, seja qual for o resultado das eleições presidenciais de 5 de novembro; a Rússia de Putin não intervirá diretamente, mas nem sequer precisa – basta não travar o seu aliado Irão para que beneficie de um conflito que retira centralidade à agressão que está a perpetrar na Ucrânia há quase mil dias.

A aproximação militar entre Moscovo e Teerão, embora negada por ambas as capitais, tem tido pormenores cada vez mais evidentes. 

Unidades russas estão no Irão a receber treino para usar os mísseis balísticos táticos iranianos Fateh-360. Teerão pretende os caças Su-35 russos e os sistemas de defesa aérea S-400, fundamentais para um cenário, agora mais provável, de uma retaliação israelita contra espaço iraniano.

Para Putin, o cenário ideal seria o do prolongar deste conflito sem que o mesmo resvale para uma guerra total e descontrolada. Dessa forma, o Irão poderá continuar a fornecer armamento a Moscovo, mas passará a ficar ainda mais dependente da Rússia. E os olhos do mundo ficam cada vez mais afastados dos crimes que os russos insistem em fazer no palco ucraniano.

Nas últimas três semanas, Israel lançou sobre o sul do Líbano o maior ataque aéreo das últimas décadas em todo o mundo, só equiparável aos primeiros dias da guerra em Gaza contra o Hamas e bastante superior ao que EUA e coligação internacional fizeram entre 2014 e anos seguintes sobre o território controlado pelo Daesh, no Iraque e na Síria (fonte: “Airwars”).

Mais de duas mil pessoas foram mortas no Líbano em quase um ano de combates entre Israel e o Hezbollah, segundo dados do governo de Beirute. Perto de três quartos desses óbitos ocorreram nas últimas três semanas.

Se isto não é uma guerra regional, como será uma guerra regional?

Só nos últimos dias, Israel foi atacada em massa pelo Irão e atacou o Hamas em Gaza, o Hezbollah no Líbano e realizou o maior ataque na Cisjordânia em duas décadas: se isto não é já uma guerra regional, como será uma guerra regional? 

Países árabes sunitas – Arábia Saudita, Catar, Bahrain, Omã, Kuwait, Emiratos Árabes Unidos –, mais próximos geograficamente de Israel, permanecerão neutros num cenário de guerra direta entre Telavive e Teerão. O mundo muçulmano não lhes permitiria uma preferência assumida por Israel, a rivalidade sunitas-xiitas impediria a preferência pelo Irão. Dos Emiratos veio recado certeiro: “As milícias sectárias custaram caro aos árabes”. 

A via diplomática e da dissuasão, insistentemente proposta pelo chefe da diplomacia da Jordânia nos últimos dias, mesmo tendo perdido caminho nesta fase de escalada, terá sempre este conjunto de países árabes sunitas como elementos cruciais de pacificação na região.

E, depois, há a China

Esta é, pois, uma guerra regional de consequências cada vez mais globais. O escalar das últimas semanas ajuda-nos a estabelecer um caminho de aproximação de posições entre os diferentes atores, quando comparadas as duas guerras que dominam as nossas atenções e preocupações: a agressão russa na Ucrânia e o conflito de Israel com o Irão e os seus “proxys” no Médio Oriente.

Vejamos a China. 

Com a sua típica propensão para fazer notar que não entra diretamente em conflitos, Pequim tem feito saber que está “muito preocupada” com o escalar da guerra no Médio Oriente. Estas manifestações de preocupação vêm quase sempre acopladas a um discurso muito crítico sobre a influência dos EUA no apoio a Israel, numa confluência retórica em relação a Moscovo no que toca à suposta necessidade de terminar com o “mundo unilateral” norte-americano e à suposta “mentalidade de guerra fria” imposta por Washington.

Um olhar mais atento mostra-nos que a China tem vindo a ter uma posição cada vez mais próxima, embora não assumida, ao Irão e aos seus “proxys” na região e, claro, em relação à Rússia. 

Se na agressão russa da Ucrânia a China já escolheu o lado do agressor ao ajudar Moscovo a contornar as sanções, comprando à Rússia combustíveis fósseis a preço de saldo e, com isso, ajudando a financiar a guerra – para lá dos semicondutores que fornece, fundamentais para o fabrico de mísseis – também no Médio Oriente poderemos estabelecer um paralelo no comportamento chinês.

A China é, de longe, o maior cliente do petróleo iraniano. 

Não era assim até 2018. Mas nos últimos seis anos o volume de exportação de petróleo por parte do Irão tem vindo a subir significativamente, a ponto de estar, neste momento, num pico de 750 mil barris/dia (12% mais que há três anos).   

Tal como fizeram com a Rússia, os chineses viram nas sanções ocidentais ao Irão uma oportunidade e colocaram-se como o cliente preferencial do petróleo iraniano, somando mais de 80% do total das compras (seguem-se, muito atrás, Síria e Venezuela). Esta afirmação da China no mercado iraniano até permitiu pequena redução nas compras de petróleo russo (menos 14% em março de 2024, quando comparado com março de 2023). As receitas petrolíferas subiram 10% no último ano e o total de exportações à volta de 40%. 

Isto ajuda-nos a compreender a relevância de uma eventual retaliação israelita sobre as reservas petrolíferas iranianas, algo que Biden pretende evitar (e que Trump já fez saber, no terreno da campanha, que autorizaria se já estivesse na Casa Branca).

Enquanto isso, a China entrou pela primeira vez nas águas do Ártico, um território cada vez mais explorado pelos russos e que oferece novas rotas de eventual domínio autocrático. A Guarda Costeira da China afirmou ter entrado pela primeira vez em águas do Oceano Ártico no âmbito de uma patrulha conjunta com a Rússia. A declaração foi feita um dia depois de a Guarda Costeira dos Estados Unidos ter detetado quatro navios da Guarda de Fronteiras russa e da Guarda Costeira chinesa no Mar de Bering – o local “mais setentrional” onde, segundo a Guarda Costeira norte-americana, os navios chineses foram observados.

Lavrov resumiu a perspetiva russa sobre este alinhamento crescente entre os poderes autoritários revisionistas anti-Ocidente (China, Rússia, Irão e Coreia do Norte): “A China precisa de uma Rússia forte, e a Rússia precisa de uma China próspera e estável”.

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