Guerra na fronteira Wagah
Quem já viu a cerimónia militar na fronteira Wagah, perto de Amritsar no lado indiano e de Lahore no lado paquistanês, pode ter uma ideia do imenso orgulho nacional de cada um dos países nascidos em 1947 da divisão da Índia Britânica, o chamado Raj. Há bancadas para indianos e paquistaneses apoiarem os respetivos militares, em regra escolhidos entre os mais altos e garbosos, enquanto estes marcham levando o conceito de passo de ganso ao limite. E o bater dos portões com estridência merece uma chuva de aplausos. É como se as duas seleções de críquete estivessem em campo. Numa final.
Fosse esta a única manifestação da inimizade entre os chamados irmãos-inimigos e o mundo até poderia estar descansado sobre o risco de uma conflito entre duas potências nucleares. Mas o problema é que Índia e Paquistão já travaram três guerras (1947/1948, 1965 e 1971), também uma mini-guerra (Kargil, em 1999), e abusam quotidianamente da troca de tiros de artilharia ao longo da fronteira não oficial em Caxemira, tanto como insistem na troca de acusações de apoio a terroristas. Desta vez, a tensão subiu por causa de um atentado terrorista na Caxemira sob controlo indiano, com Nova Deli a apontar de imediato o dedo a grupos baseados no Paquistão, e retaliando com um ataque à Caxemira paquistanesa e não só. Se se repetir o padrão de uma situação semelhante em 2019, haverá resposta por parte de Islamabad, firme q.b., mas calculada para não provocar forçosamente novo ataque indiano.
Caxemira é o grande problema por resolver. A divisão do Raj foi sangrenta. Milhões de sikhs e hindus fugiram para o lado indiano (muitos cruzando o que é hoje a fronteira Wagah), milhões de muçulmanos salvaram a vida refugiando-se no Paquistão. Também na fronteira com o atual Bangladesh (Paquistão Oriental até 1971) houve massacres, desafiando a mítica convivência de religiões na Ásia do Sul. Mas dois países emergiram, e consolidaram-se, cada qual com um projeto nacional, o indiano de uma nação laica multirreligiosa, o do Paquistão de uma pátria para os muçulmanos da Índia, herdeiros da civilização mogol e decididos a não ser a minoria num gigante de maioria hindu.
Caxemira têm um lugar central nos dois projetos nacionais. E isso acaba por desempenhar um papel muito mais importante do que os argumentos demográficos, históricos ou legais com que Nova Deli e Islamabad se digladiam para reivindicar soberania sobre toda ela (no caso da Índia, também sobre parcelas anexadas pela China). Para a Índia, Caxemira, o único estado de maioria muçulmana, comprova o pluralismo de um país que conta com mais de 200 milhões de muçulmanos. Para o Paquistão, Caxemira é como um pedaço do corpo da nação que foi amputado. Basta pensar que no nome “Pakistan”, criado por um intelectual muçulmano, o K corresponde a Caxemira, tal como o P, só para dar um exemplo, significa Punjab.
Não haverá verdadeira paz para breve entre a Índia e o Paquistão. Demasiado os divide. Muitas são as razões para não confiar um no outro. Mas para os 1450 milhões de indianos e os 250 milhões de paquistaneses é vital que não haja nova guerra. E que, até haver um dia líderes de um lado e do outro capazes de um entendimento, o único guerrear entre a Índia e o Paquistão seja na encenação feita na fronteira Wagah.