Guerra fria no Magrebe
A questão sarauí está definitivamente e, de novo, no centro da agenda leste-oeste. As mudanças na Casa Branca, no Congresso e no Senado americanos permitem a argelinos e sarauís esticarem a corda, no sentido de sinalizarem perante a nova administração a existência do diferendo que mantêm há 46 anos com Marrocos.
É nesse sentido que se explica a decisão argelina em iniciar exercícios militares na região de Tindouf, com fogo real, a 17 e 18 de janeiro. Esta zona é fronteiriça e ponto de refúgio sarauí, pelo que populações e militares independentistas sarauís terão feito parte do mesmo. Ao mesmo tempo, três navios de guerra russos faziam uma conveniente paragem técnica no porto de Argel. No passado fim-de-semana, circularam rumores sobre um ataque sarauí no "estreito de Guerguerat", com três ou quatro mísseis, dependendo da fonte. Entretanto, os marroquinos fizeram o que melhor sabem, "cara de póquer" e negaram tudo, sobretudo a passagem no posto fronteiriço de Guerguerat, garantindo que o fluxo de tráfego não fora alterado, o que por si só negava qualquer ataque inimigo.
A Argélia, perante a lista de potenciais revogações presidenciais americanas às decisões tomadas por Trump, como o regresso destes aos Acordos de Paris no ambiente e ao seio da Organização Mundial da Saúde, já tomadas, pressiona desta forma a inclusão nessa lista, não dos Acordos de Abraão, mas do ganho marroquino ao aderir aos mesmos, que se pautou pelo reconhecimento americano da soberania marroquina sobre o Sara Ocidental, transformando-o em Sara Marroquino.
A administração Biden, mas sobretudo o novo presidente, quererá marcar uma diferença entre "a água e o vinho", perante o que foi o seu antecessor, demarcando-se da "torre de marfim dourada" que o Twitter representou para Trump enquanto escudo de protecção, que lhe permitia a distância e a frieza de um imparcial justo. Biden vai querer certamente envolver-se pessoalmente, devolvendo à política um lado humano perdido para as novas tecnologias. Nesse sentido, esta nova administração já deu um sinal na sede das Nações Unidas, que apoia uma solução de dois Estados no âmbito da questão palestiniana, rompendo com o até aqui apoio total e incondicional de Trump a Israel.
Perante isto, quanto maior for a tensão entre Argélia e Marrocos, na perspectiva da velha guarda bipolar da "guerra improvável, paz impossível", maior será a tendência para Biden querer uma solução negociada para a questão sarauí, vendo este certamente uma das soluções na realização do referendo já esquecido. E este, a acontecer, poderá virar de novo o jogo do avesso.
De momento, a "guerra das areias" trava-se em Washington e Nova Iorque, entre a manutenção do statu quo e a mudança, na qual o aparentemente dócil e burocrático António Guterres também terá uma palavra a dizer.
Politólogo/arabista. Escreve de acordo com a antiga ortografia
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