Gostava muito mais de comprar sapatos na Lisboa do Keil do Amaral!
Lembro-me de ir à Cenoura quando era muito miúdo e depois aos Porfírios, já em plena adolescência, com alguns amigos (e amigas!) lá do liceu.
Mas o que me fascinava mais, em Lisboa, era ir às compras com a minha mãe! Eram manhãs de sábado intermináveis a palmilhar sapatarias entre os Restauradores, o Rossio e a Rua Augusta.
A minha loja favorita, antes de ter descoberto mais tarde cafés como o Galeto, o Pique-Nique ou o Tique-Taque, era a sapataria e chapelaria Lord! Com desenho arquitetónico do Francisco Keil do Amaral, esta sapataria era um poema visual perfeito de combinação entre espaço, circulação e materiais.
Com as suas paredes tipo Tetris, repletas de caixinhas muito certinhas e arrumadinhas, era o que mais fascinava os olhos desta criança que ia a Lisboa de tempos a tempos. Lembro-me de esparramar todo o meu esqueleto, até não conseguir esticar mais osso nenhum, nos bancos e nas cadeiras de madeira maciça almofadadas e forradas a cabedal. Com a vontade de ter trazido pelo menos um chapéu, lembro-me de sair da Lord a caminho da Galã e da Martex, também da autoria do Keil do Amaral.
Hoje sei que, a este arquiteto, lhe foi incutida pelo seu mestre uma necessidade quase obsessiva pela conquista de uma modernidade, preservando a linha estruturante da cidade e conservando a linguagem da cultura local que emanava de Lisboa.
Agora somos todos Ikea. Somos todos Zara. Somos todos iguais. Os sapatos vêm todos do mesmo sítio e as lojas de Lisboa são réplicas das de Madrid ou das de Milão.
Este imaginário estético, hoje, é só e apenas isso mesmo, um mundo que será imaginado para as próximas gerações, nascido numa realidade que já não existe. Uma realidade que era partilhada por cabeleireiros, sapatarias e snack-bars. Uma realidade construída pelos designers e arquitetos da época, como Keil do Amaral, Bento d’Almeida, ou Victor Palla. Uma realidade construída pelos, e para os, lisboetas.
Quando vejo fotografias destes espaços desaparecidos, sou como que teletransportado para uma estética modernista local, própria e singular, mas que acabou.
O que eu não vejo neste teletransporte é o design português a impor-se nos novos espaços comerciais deste mundo global. Tal como eu, parece que também o design anda perdido numa máquina do tempo, mas que tem a alavanca partida, pois o bom que se fez lá atrás, não serve para andarmos para a frente.