“Gastem!”
O projecto de uma Defesa Comum europeia não é de agora. Esqueçamos o tratado que instituía a Comunidade Europeia de Defesa cuja ratificação o Parlamento francês recusou, quando os demais Estados signatários já a tinham sufragado. Apesar de já na NATO, vivíamos então sob ditadura e estávamos obviamente de fora. Foi o Tratado de Maastricht, ao incluir política externa e de segurança nas missões da União Europeia, que a consagrou como um objectivo a atingir “no momento próprio”. Fizemos - não só nós - uma revisão da Constituição para nos permitir a participação plena.
O Tratado de Lisboa foi mais longe. A Política Comum de Segurança e Defesa inclui a definição gradual de uma Defesa Comum da União - e conduzirá a ela, observados os requisitos previstos. Passou mais de década e meia sobre a sua entrada em vigor e o plano “Rearmar a Europa”, agora apresentado ao Conselho Europeu e aí liminarmente aceite, suscita uma interrogação: como se articula ele com a definição de uma Defesa Comum da União? Aparentemente, mal.
O que vem propor a presidente da Comissão - ex-ministra da Defesa alemã e há mais de 5 anos no cargo actual - reconduz-se, no fundo, a uma estimativa sobre o aumento da factura militar dos Estados-membros, a cada um deles cabendo, em última análise, decidir da sua concretização (montante e “compras”). Poder-se-ia falar, mesmo, face aos objectivos enunciados, de uma “renacionalização” das políticas de Defesa. Membros do Conselho Europeu resumiram o plano assim: “Gastar, gastar, gastar.”
Não chega, porém, a tratar-se do criticado recurso de lançar dinheiro fresco sobre problema velho: não há dinheiro fresco no plano. Trata-se, sobretudo, de um ruidoso - e singular - “endividai-vos!” Como ao longo dos anos se foram instituindo regras restritivas, procedimentos e sanções a respeito de deficits e de dívida, o incentivo essencial a conceder agora é um verdadeiro ovo de Colombo: afastá-las ou mitigá-las no caso de se estar perante despesa militar.
Num país como a Alemanha - que naturalmente seria, por várias razões, o principal destinatário - interiorizou-se num ápice todo o alcance do ReArm. Como em 2009 foi levada à Constituição uma drástica limitação do défice - que a tantos inspirou pela Europa fora -, pretende-se alterá-la já nos próximos dias recorrendo à composição do Parlamento anterior às últimas eleições (pois que na nova não haverá os 2/3 necessários para esse efeito).
Faltou, de todo, explicar aos eleitores e contribuintes europeus a relação entre a despesa estimada e o conteúdo das facturas que uma lógica de Defesa Comum justificaria. Talvez fazê-lo exorbitasse do papel institucional da responsável pelo plano (“precisamos urgentemente de armar a Europa e, para isso, vou apresentar um plano” - disse, em Londres, ao mundo). Há outras instituições e cargos a que o tratado confia a Segurança e a Defesa e, mesmo, limites colocados neste campo à esfera da Comissão. Não por acaso, a Agência Europeia de Defesa está colocada sob a autoridade do Conselho.
Nessa falta, 3 anos após o início da guerra na Ucrânia e pouco mais de um mês depois da sua posse, muitos europeus terão a percepção de que são as cominações de Trump que prevalecem.
Jurista, antigo ministro.
Escreve sem aplicação do novo Acordo Ortográfico