Fugir à beira da liberdade: o paradoxo das fugas em penas curtas

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Porque razão um recluso arriscaria fugir da prisão quando lhe faltam poucos meses para cumprir a pena? À primeira vista, parece ilógico. Quem já passou pelo maior período da punição deveria preferir aguardar a saída pela via legal. No entanto, fugas nestas circunstâncias continuam a ocorrer, e este paradoxo levanta questões sérias sobre as falhas do sistema prisional. Estas evasões expõem fragilidades estruturais e operacionais do sistema penal. Em muitos casos, quando o fim da pena se aproxima, instala se uma falsa sensação de segurança, tanto no recluso, que sente a liberdade ao alcance, como nos guardas prisionais, que baixam a guarda. O resultado é um cenário em que a antecipação da libertação pode, ao contrário do esperado, incentivar tentativas de fuga em vez de as desencorajar.

Este fenómeno contraria as expectativas e desafia explicações simples. Não se trata apenas de uma decisão irracional do recluso; é também um sintoma de problemas mais profundos. A sociedade espera que um preso prestes a sair em liberdade condicional não arrisque deitar tudo a perder. Espera se igualmente que o sistema prisional garanta segurança até ao último dia de pena. Quando a realidade foge a estas expectativas, somos obrigados a questionar o que está a falhar dentro dos muros da prisão. Será culpa de uma vigilância frouxa? De um regime penal demasiado brando? Ou de uma cultura institucional complacente? Provavelmente de tudo um pouco. As respostas passam pela análise da moldura penal, do papel dos guardas prisionais e das falhas sistémicas que permitem estas fugas aparentemente sem sentido.

Penas brandas, vigilância branda?

Um dos fatores a considerar é a moldura penal curta, penas relativamente leves ou de duração menor em comparação com crimes mais graves. À primeira vista, uma pena mais branda indicaria que o crime cometido não foi dos mais severos. No entanto, quando o regime punitivo é mais permissivo, parece também haver uma menor rigidez nos controlos prisionais, criando oportunidades para a evasão. Por outras palavras, se o sistema trata determinado recluso como “pouco perigoso” devido à pena curta, existe a tendência de relaxar a vigilância, o que pode ser um erro grave. Estudos sugerem que a eficácia do controlo prisional acompanha a gravidade da pena aplicada. Quando a punição é leve, a vigilância tende também a ser mais leve e é aí que os problemas começam.

Em certos casos, esta relação torna-se evidente. Por exemplo, o ensaio de que partimos aponta ocaso do homem de 57 anos, Carlos Alves, que na passada 6.ª feira fugiu da prisão de Sintra, onde cumpria pena por crimes de violência doméstica e posse de arma, enquanto integrava um grupo de presos em obras no exterior da prisão, para ilustrar como, em situações onde a intervenção judicial é atenuada, acaba por ocorrer uma fragilização da fiscalização exercida pelos guardas. Ou seja, se por razões legais ou culturais um crime sério recebe uma pena relativamente curta, o sistema pode baixar a guarda, interpretando-o como menos ameaçador. Isso pode ser visto como negligência involuntária ou mesmo facilitação: práticas institucionais e rotinas acabam por prevalecer sobre as precauções de segurança. Em vez de se aumentar a cautela nos últimos meses de reclusão, quando a ansiedade e a expectativa do preso estão no auge, muitas vezes assiste-se a um abrandamento das medidas de controlo.

Essa dinâmica envia uma mensagem perigosa. Para o recluso, a punição branda pode diminuir o medo das consequências. Se a punição original foi curta, ele pode imaginar que uma eventual recaptura por fuga também não será assim tão grave. De certa forma, a pena leve pode pavimentar um terreno fértil para a insubordinação, minando o efeito dissuasor que a prisão deveria ter. Além disso, a iminência da liberdade paradoxalmente pode intensificar o desejo de fuga. Estando “tão perto e tão longe” da porta de saída, alguns reclusos sucumbem à tentação de antecipar a liberdade por meios ilícitos. Assim, a moldura penal influenciandocomportamentos e expectativas é um elemento central para entender estas fugas.

Negligência e conivência: o papel dos guardas prisionais

Nenhuma fuga ocorre sem que haja alguma falha na vigilância. Aqui entra o segundo elemento-chave: a atuação dos guardas prisionais. As falhas no controlo por parte dos guardas revelam fragilidades profundas na gestão prisional. Em muitos casos, estas fugas perto do final da pena indicam negligência, seja por relaxamento excessivo, seja por falta de atenção e em alguns casos até cumplicidade ou facilitação deliberada.

Várias razões podem explicar porque os guardas baixam a guarda (literalmente) nessas situações. Primeiro, fatores institucionais: prisões com recursos limitados frequentemente enfrentam falta de efetivos, excesso de horas de trabalho e rotatividade elevada de pessoal, o que dificulta um acompanhamento rigoroso dos presos. Guardas sobrecarregados e exaustos têm maior probabilidade de falhar na fiscalização. Um estudo recente sobre guardas prisionais identificou que a síndrome de burnout, esgotamento profissional físico e mental, reduz significativamente a capacidade de vigilância dos guardas. Quando os guardas estão exaustos e desmotivados, as distrações aumentam e a atenção ao detalhe diminui, criando brechas que os reclusos mais oportunistas não hesitarão em explorar.

Em segundo lugar, há a questão da formação e disciplina. Guardas mal treinados ou sem fiscalização rigorosa podem não seguir à risca os protocolos de segurança. Procedimentos que deviam ser inegociáveis acabam por ser flexibilizados ou ignorados, muitas vezes por rotina ou excesso de confiança. A título de exemplo, afrouxar inspecções, deixar portas entreabertas, ou não vigiar adequadamente durante as saídas regulamentadas são falhas que já permitiram evasões no passado. A formação insuficiente do pessoal torna-os menos aptos a antecipar e prevenir tentativas de fuga. Some-se a isso a ausência de consequências claras para falhas de segurança: se um guarda negligente raramente é responsabilizado, instala-se uma cultura de conivência onde “não acontece nada”, até acontecer.

Outro ponto delicado é a relação entre guardas e reclusos. Numa prisão, desenvolve-se inevitavelmente uma convivência diária que pode gerar vínculos pessoais. Se por um lado o respeito mútuo e a humanização do tratamento são positivos, por outro uma excessiva familiaridade pode minar a autoridade. Há casos em que guardas, sem se aperceberem, facilitam por confiarem excessivamente em certos presos. Esse entendimento tácito, “ele está quase a sair, não vai arranjar problemas”, pode ser explorado pelo recluso determinado a fugir. Estudos sociológicos assinalam que, em muitos contextos, cria-se uma espécie de “entendimento mútuo” entre internos e elementos de segurança, uma normalidade informal que às vezes se sobrepõe às regras oficiais. Quando isso acontece, os limites ficam difusos e oportunidades de fuga podem surgir sem que ninguém “dê por isso”. Em situações extremas, há mesmo relatos de corrupção ou colaboração intencional, guardas subornados para facilitar fugas, ou que conscientemente fecham os olhos. Esses casos são raros, mas não impossíveis, especialmente se a prisão de comando for fraca e a cultura institucional tolerar pequenos desvios que evoluem para graves quebras de segurança.

Resumindo, a falha humana no controlo, seja por cansaço, descuido ou conluio, é um fator determinante nestas fugas. Enquanto a vigilância funcionar “no papel” mas não na prática, os reclusos mais arrojados tentarão escapar, mesmo que estejam a semanas de conquistar a liberdade legalmente.

Falhas do sistema prisional e cultura de impunidade

Mas não é justo colocar toda a responsabilidade nos guardas da linha da frente. Por detrás deles existe um sistema prisional com os seus métodos, prioridades e limitações. Quando ocorrem fugas nestas circunstâncias peculiares (penas curtas, fim da condenação à vista), isto reflete também falhas sistémicas e uma possível cultura de impunidade dentro do ambiente prisional.

Um primeiro problema sistémico é a falta de investimento e planeamento. Se prisões com reclusos de menor perigosidade são encaradas como de baixo risco, elas tendem a receber menos recursos em segurança. Podem não ter equipamentos modernos (câmaras, alarmes) ou pessoal suficiente justamente onde se presume não haver problema. Essa subestimação do risco é uma falha estratégica. Nenhuma fuga é “pequena” ou irrelevante, pois cada evasão abala a credibilidade das instituições e representa um potencial perigo à sociedade. Ainda assim, parece haver uma tendência de desleixo organizacional em prisões consideradas calmas. Até que um incidente ocorra e exponha o quão impreparado o sistema estava.

Outra falha estrutural é a ausência de avaliação individualizada de risco. Nem todos os reclusos com penas curtas são iguais: alguns podem ter histórico de tentativas de fuga, perfis psicológicos impulsivos ou redes de apoio externas prontas a ajudá-los a fugir. Se o sistema não diferencia e aplica o mesmo nível de fiscalização mínima a todos os presos de “baixo risco”, está a ignorar sinais de alerta importantes. Uma fuga nestas condições muitas vezes revela que não se prestou atenção ao caso específico daquele indivíduo, por exemplo, se ele manifestava ansiedade extrema, desespero, ou se planeava algo suspeito. A desconsideração das particularidades de cada condenado cria condições para surpresas desagradáveis.

Também não podemos esquecer o fator impunidade interna. Quando uma fuga acontece, qual é a consequência para a gestão prisional? Muitas vezes, assiste-se a um “jogo do empurra”: as culpas perdem-se na burocracia. Raramente se ouve falar de diretores de prisão destituídos por uma evasão ou de guardas efetivamente punidos, a não ser que haja um escândalo mediático. Esta falta de responsabilização alimenta a sensação de que o sistema não aprende com os erros. Se ninguém é responsabilizado, por que razão haveria mudança? Infelizmente, isso pode criar um ciclo vicioso: falhas repetidas, desculpas repetidas, e tudo continua na mesma até à próxima fuga.

Por fim, é pertinente mencionar a questão da reabilitação falhada. Se um indivíduo prefere arriscar uma fuga a cumprir os últimos meses de pena, talvez seja sintoma de que o sistema não conseguiu prepará-lo minimamente para a liberdade. Seja por medo do desconhecido cá fora, seja por não ter retaguarda social, ou por se sentir mais “em casa” na vida marginal, essa escolha extrema reflete um fracasso da reinserção. Claro que cada caso é um caso, alguns fugitivos perto do fim da pena podem agir apenas por oportunismo. Mas não deixa de ser uma oportunidade para perguntar: o que leva alguém a concluir que fugir é melhor do que sair pela porta legal dentro de pouco tempo? As respostas podem passar por desespero, falta de confiança no sistema, problemas mentais não detetados, ou pressões de outros criminosos. Todos esses fatores apontam, de novo, para falhas do sistema em acompanhar e compreender a situação de cada recluso.

Reforma e responsabilização: um caminho urgente

As lições a tirar deste paradoxo das fugas em fim de pena são claras: o sistema prisional precisa de mudanças. Continuar a encarar estas evasões como meros incidentes isolados é ignorar o problema de fundo. A persistência de fugas num contexto de penas relativamente brandas mostra que algo está estruturalmente errado e requer reforma. É imperativo reforçar a segurança e a fiscalização, sem abdicar da missão de reinserção. Uma coisa não pode excluir a outra, pelo contrário, devem andar de mãos dadas para que a prisão cumpra efetivamente o seu papel duplo de proteger a sociedade e recuperar o indivíduo.

Em primeiro lugar, impõe-se melhorar a formação e as condições de trabalho dos guardas prisionais. Profissionais melhor preparados, valorizados e supervisionados terão menos propensão a falhas por descuido ou esgotamento. Isso inclui formação conítnua em procedimentos de segurança, gestão de stress e ética profissional, bem como apoio psicológico para lidar com o desgaste do trabalho prisional. Guardas motivados e alertas são a melhor prevenção contra qualquer fuga.

Em segundo lugar, é necessária uma cultura de responsabilização dentro do sistema. Negligências não podem ser varridas para debaixo do tapete. Cada fuga deve ser investigada a fundo, apurando eventuais falhas humanas e operacionais. Se houver guardas ou dirigentes cuja conduta facilitou a evasão, por acção ou omissão, devem existir consequências proporcionais. Isso não pretende crucificar os profissionais, mas incutir um sentido de responsabilidade e urgência em seguir os protocolos à risca. Da mesma forma, premiar as boas práticas e os exemplos de vigilância eficaz pode motivar equipas a manter o rigor.

Em terceiro lugar, urge rever procedimentos e protocolos à luz destes incidentes. Medidas simples, como check-ups adicionais nas semanas que antecedem a liberdade condicional de um recluso, poderiam detectar comportamentos de risco (por exemplo, sinais de que está a planear algo). Talvez valha a pena implementar um “alerta vermelho” para presos a poucas semanas da soltura, paradoxal que pareça: reforçar a vigilância justamente quando se aproxima a saída, assegurando que nada descarrila nessa reta final. Tecnologias de segurança também devem ser consideradas, alarmes, sensores, monitorização electrónica temporária, mesmo para reclusos de baixo risco, se houver qualquer indicador de possível fuga.

Por último, mas crucial, é reavaliar a própria moldura penal e o acompanhamento dos reclusos. Se determinadas penas curtas para crimes graves estão a gerar oportunidades de fuga, pode ser necessário ajustar a legislação ou as diretrizes de segurança para esses casos. A proporcionalidade da pena deve vir acompanhada da proporcionalidade das medidas de segurança. Além disso, intensificar programas de reinserção nos meses finais, prepará-los melhor para a transição, avaliar o seu estado psicológico, pode reduzir a ansiedade e impulsividade que levam à fuga na última hora.

Em conclusão, fugir à beira da liberdade não é apenas um ato insensato de um indivíduo, é um espelho das falhas coletivas de um sistema. Desde a legislação penal, passando pela gestão prisional, até à atitude diária dos guardas, há pontos vulneráveis que precisam de ser fortalecidos. Enquanto um preso com poucos meses por cumprir conseguir escalar um muro ou passar por um portão distraído, estaremos todos a falhar. Fracassando em garantir a segurança, falhando em aplicar a justiça de forma consistente e falhando em prover a esperança de reintegração. Transformar este panorama exige vontade política para a reforma e tolerância zero para a negligência. Se quisermos evitar que casos assim se repitam, está na hora de olhar de frente para este paradoxo e corrigi-lo, por segurança, por justiça e pelo próprio sentido da pena de prisão.

Licenciado em Estudos de Segurança - Universidade Lusófona de Lisboa

Doutorando em Relações Internacionais (Segurança Interna da UE) – ISCSP/Universidade de Lisboa

Especialista em Cooperação Policial Internacional (DIC/DN)

Investigador Criminal (DIC/DN)

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