Folhas caídas

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Nélson nasceu em Lisboa nos anos 90 do século passado, filho de pai cabo-verdiano e mãe angolana. Não nasceu português. Tinha apenas uma cédula indicativa do seu nascimento por cá. O seu percurso escolar de apátrida correu com êxito até ser confrontado com um exame nacional que o obrigava a ter a nacionalidade ou um documento que atestava a sua presença legal no país. Esse foi o dia em que foi forçado a abandonar a escola.

Seguiram-se mais de dez anos na rua, encostado a paredes, ora deprimido ora com raiva e cobiçado por empregadores que aproveitaram o seu estatuto de ilegal para multiplicar lucros com a oportunidade de poderem contar com a sua força de trabalho a baixos custos sem declaração de impostos e outros encargos.

Sobrou-lhe o rap e os microfones para ir registando essas vicissitudes. Já perto dos trinta anos, Nélson teve a excecionalidade de ser contratado por uma ONG que trabalha com imigrantes. Deram-lhe um contrato de trabalho que o permitiu ter a autorização de residência no país.

Já para obter a nacionalidade é toda uma outra história. Chegado às representações diplomáticas de Angola e Cabo Verde para obter os respetivos passaportes, mandaram-no embora. Naturalmente nenhum dos países o conhecia, nasceu em Portugal. Depois teve de provar que nunca saiu do país e, entre outras exigências administrativas, provar o que fez do seu dia-a-dia desde o tal exame escolar até estar ali presente a pedir a nacionalidade. Ora, convém que sem estar na escola e trabalhando ilegalmente, não é fácil.

Jorge, um dos meus melhores amigos, chegou de Cabo Verde com um ano para tratar da asma em 1980 e ainda não tem se quer a autorização de residência. Geni, que chegou sozinho com quatro anos fugido da guerra civil de Angola também na década de 80 ainda não tem documento de residência ou a nacionalidade, nem vai ter. Empurrado pelas poucas hipóteses, passou um par de anos preso, reabilitou-se por cá, mas nem isso lhe vale. Já Nuno, também da minha idade é português, nascido em Lisboa, tal como os seus quatro irmãos -- mas que são cabo-verdianos por terem nascido depois de 1982, data da nova lei da nacionalidade que mudou de jus solis para jus sanguinis.

Hoje, num balcão qualquer onde precise de levantar um documento para tratar da sua residência, o imigrante vai encontrar um aviso para no caso de não falar português ter de levar o seu próprio tradutor. Logo ali, na loja do cidadão, desde manhã, bem cedo, um outro grupo de imigrantes que dominam o processo e a língua, oferecem de forma informal os seus préstimos em troca de numerário.

Para marcar um atendimento do SEF/AIMA fica-se meses ao telefone. Atenção, só para conseguir marcar. O atendimento marcado fica para dali a uns meses. Isto só para começar o processo. Demora-se anos para ter a residência, anos para ter a nacionalidade; mesmo que com todos os requisitos necessários. Tudo isto pode ser mais rápido e arriscado recorrendo a angariadores, a advogados que usurpam o seu papel, a máfias.

Vi e li muito esta semana sobre sensações de insegurança dos portugueses sobre a imigração e alguns dados que rebatem essa narrativa. Em resposta às palavras de Pedro Passos Coelho, muitos interpretes da direita transformaram-se, de repente em autênticos humanistas, preocupados com as condições de vida dos imigrantes. O que eu não vi nem li foi ninguém rebater que o país tem as fronteiras “escancaradas”. Não há uma reportagem, um ponto de situação sobre o assunto. E como descrevi, não tem.

Milton Friedman, o arauto da economia política da direita, dizia que a imigração é boa para as sociedades que os acolhem, desde que se mantenha ilegal para que os salários dos trabalhos que ninguém quer fazer se mantenham baixos e para não onerar o estado social. Sabemos hoje que os imigrantes até financiam o nosso Estado Social.

As nossas leis de imigração, definidas nas últimas décadas pelo bloco central são racistas. Segregou espacialmente, dificultou o acesso ao emprego e a serviços essenciais como a saúde, procura separar os que recorreram à imigração do exercício de cidadania. Racista porque fá-lo especialmente para oriundos de países outrora colonizados por europeus, em que a maioria da população não é branca.

Assim, não se deixem enganar pelo súbito interesse da direita para discutir a imigração. Apenas querem dificultar o que já é difícil. E talvez possa parecer, dos discursos proferidos do palanque, que Portugal é um destino apetecido. Não é. Quase todos os imigrantes preferem ir para outro país da Europa. Portugal é só o país possível para alguns.

E por fim, enquanto os portugueses passam horas a discutir a sua sensação de insegurança face aos imigrantes, para estes últimos a insegurança é uma certeza. Adormecem sem saber se vão ser acordados por um incêndio, trabalham sem saber se recebem ordenado, andam na rua sem saber em que momento vão ser espancados por grupos de portugueses ou sequestrados e torturados por forças de segurança.

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