Foi você que disse formação de públicos?
Revejo as lágrimas de Anna Karina no filme Viver a sua Vida (1962), de Jean-Luc Godard - a cena acontece no escuro de uma sala de cinema em cujo ecrã está a ser projetado o clássico A Paixão de Joana d’Arc (1928), de Carl Th. Dreyer. Identifico-me com a sua condição de espetadora. A imagem de Karina pertence a um coletivo (de espetadores, justamente) cuja história, identidade e mitologia foi sendo decomposta pela saturação das comunicações virtuais e pela obscenidade “social” deste mundo em que, como referiu Lídia Jorge com perturbante acuidade, os “cidadãos” se transformaram em “seguidores”. Dito de outro modo: continua a haver filmes, mas desapareceu o povo do cinema.
No labirinto destas questões emerge o problema da “formação de públicos”. Convenhamos que, por estes dias, a ideia de acumular num mesmo ministério “Cultura, Juventude e Desporto” não augura nada de bom, de tal modo as especificidades dos assuntos assim conjugados envolvem ações e factos profundamente diferenciados. Seja como for, o pano de fundo - tanto em termos conceptuais como no plano da filosofia da cultura - está muito para lá de tudo isto e envolve uma tragédia (cultural, precisamente) em que direitas e esquerdas se igualam na mesma chocante indiferença.
Indiferença a quê? Ao facto rudimentar, que nos entra literalmente pelos olhos dentro, de ser urgente - culturalmente e politicamente urgente - discutir o papel daquela que é a mais poderosa entidade formadora de públicos. A saber: a televisão. Toda a televisão? Não, mas tudo aquilo que na televisão (e é muito) trabalha para criar e “satisfazer” públicos educados na maior ignorância da infinita pluralidade artística do mundo - ou do mundo artístico.
Será cobardia intelectual ou, pior um pouco, indiferença moral, mas é um facto que direitas e esquerdas, além de aceitarem passivamente o tratamento “novelesco” da política e dos políticos, recalcam uma evidência quotidiana. No espaço televisivo assistimos ao triunfo agressivo de formas narrativas que, sob o disfarce cínico do “entretenimento”, contribuem para o esvaziamento cultural de todo um povo - importa resistir à estupidez populista e revalorizar essa palavra: povo.
Assim, há mais de vinte anos, todos os dias, a todas as horas, o Big Brother (e outros horrores da Reality TV) espalha a sua vulgaridade, favorecendo uma visão pueril do fator humano em que, a começar pela sexualidade, tudo é instrumental ou caricatural - que é isso senão uma máquina de formação de públicos? Aí encontramos uma visão anedótica da condição feminina (e também da masculina, embora quase ninguém se preocupe com isso) acompanhada pelo silêncio dos feminismos dominantes. Vivemos num mundo em que se sujeitam a autos de fé mediáticos artistas como Bernardo Bertolucci ou Woody Allen, mas a mediocridade existencial do Big Brother passa incólume entre os pingos das gritarias militantes.
E que dizer das horas intermináveis de telenovelas que, todos os dias, ocupam os ecrãs caseiros? Nelas se promove uma linguagem audiovisual cuja formatação (de imagem, montagem, interpretação, dramaturgia e perspetiva humana) vai contribuindo para o esvaziamento de qualquer relação dos espetadores com a riqueza e complexidade de mais de um século de história de cinema. Neste domínio, há cineastas capazes de inusitadas revoltas contra meia dúzia de parágrafos que algum crítico possa ter escrito, mas não têm uma palavra a dizer sobre quase meio século de novelas a ocupar (como um exército narrativo) todos os ecrãs do país.
Evitemos a armadilha de julgar que tudo isto, nomeadamente em cinema e televisão, se reduz a questões de “gosto” (palavra tantas vezes aplicada de modo chantagista). E pensemos no que significa o facto de continuarmos a ter uma frágil estrutura de produção cinematográfica, lado a lado com uma poderosa indústria de novelas. Lembremos, em particular, que a conjuntura industrial é também, neste domínio, uma questão eminentemente artística.
Observem-se, a esse propósito, as gerações de desamparados intérpretes formados pelas novelas: com algumas exceções, por certo, vemos jovens atores e atrizes que aprenderam a representar num registo simplista de “naturalidade” e “espontaneidade” que os reduz a marionetas sem qualquer nuance expressiva. De quem é a culpa? Pois bem, isto não é um tribunal futebolístico. É, isso sim, um labirinto de interrogações que, no limite, envolve a identidade cultural de todo um país, da televisão que temos e das televisões que podíamos ter.