Foi há 50 anos: “Antónia, Antónia, onde estão os assassinos do teu filho?”

A morte do civil António Ramalho Fialho no dia seguinte do ataque ao RALIS, tornou-se a grande causa da Direita patriótica. Sobretudo quando a fundadora e diretora do semanário 'O Diabo', Vera Lagoa, apadrinhou a luta da mãe da vítima, Antónia Ramalho, através dos editoriais “Antónia, Antónia”, que se tornariam também num marco do jornalismo nacional. Faz hoje 50 anos que tudo começou
Publicado a

As imagens mostram um casal ladeado por soldados que os protegem de uma multidão hostil que grita: “Fascistas!”, “Mata que é fascista!” O casal é escoltado até ao carro, um Morris Mini 850, onde entra e espera pela ordem para avançar. As pessoas continuam a gritar, dão pontapés na viatura, um militar esbraceja para que dispersem. Foi há 50 anos, a 12 de março de 1975, o primeiro dia do início do PREC, à porta do RAL 1 - depois RALIS -, no dia seguinte ao ataque.

Perto das 16.00 horas, cerca de duas horas antes da visita do Presidente da República, Costa Gomes, e do primeiro-ministro, Vasco Gonçalves, os civis António Ramalho Fialho e Maria dos Santos Conceição, esperavam pela ordem para saírem do local em segurança. Quando recebeu o sinal de “pode seguir”, o condutor arrancou, mas assim que avançou pela estrada lateral ao quartel, vários soldados começaram a disparar contra o carro, que acabou por se imobilizar cerca de 20 metros mais à frente.

António Ramalho Fialho, 27 anos, estava morto, abatido pelas costas por balas de G3. A companheira sobreviveu, com ferimentos no maxilar. A execução de um civil por militares ficaria diluída pelos acontecimentos dos meses seguintes, que levariam ao 25 de Novembro. Mas foi ali que teve início a luta judicial de uma mãe, Antónia Ramalho, que iria cruzar-se com uma figura do jornalismo nacional, a fundadora e diretora de O Diabo, Vera Lagoa, pseudónimo de Maria Armanda Falcão, a “grande provocadora”. Uma união de duas mulheres fortes na mesma causa e que se tornariam ambas famosas apenas pela evocação de um nome, dito de forma repetida, como se um grito de guerra se tratasse: “Antónia, Antónia!”

A promessa

Foi a 29 de março de 1977, dois anos após os acontecimentos, que Vera Lagoa, indignada pela falta de justiça, escreveu o primeiro editorial “Antónia, Antónia”. A diretora de O Diabo, como mãe, também partilhava a dor de Antónia Ramalho, modista do Monumental, tendo então escrito: “Também vi o meu filho num 11 de Novembro, há muitos anos, espancado quase à morte, deixando uma poça de sangue à porta do Piquenique, no Rossio. O meu salvou-se. Foram os polícias fascistas que o quiseram matar. O teu, Antónia, foi morto por soldados ‘revolucionários’.”

O título “Antónia, Antónia” acabou por identificar uma causa na Direita patriótica.
O título “Antónia, Antónia” acabou por identificar uma causa na Direita patriótica. FOTO: D.R. / Arquivo

Nesse mesmo texto, Vera Lagoa faria ainda uma promessa, mesmo sem saber quanto tempo iria ter de a manter: “Uma promessa te faço, Antónia, mãe sem filho, que adoravas. Enquanto não vier a lume o teu processo, enquanto não forem julgados (ou julgado) os assassinos de teu filho, eu não me calarei. Todas as semanas, enquanto este jornal se mantiver, enquanto não me puserem bombas ou não me calarem doutra forma (já não seria a primeira), eu aqui estarei a perguntar: ‘Antónia, Antónia’, onde estão os assassinos do teu filho? Quando se fará justiça?” Mal sabia a “grande provocadora” que iria ter de manter essa promessa durante três anos.

Julgamento

Entre 1977 e 1980, O Diabo publicou com regularidade um texto pedindo justiça. O título “Antónia, Antónia” acabou por identificar uma causa na Direita patriótica. Em fevereiro de 1978, por exemplo, o concorrente Diário de Lisboa, jornal alinhado mais à esquerda, usaria a designação “Antónia, Antónia” para noticiar, em manchete, que Antónia Ramalho fora detida por suspeita de pertencer a uma rede bombista - sim, é verdade, isso também lhe aconteceu.

Antónia Ramalho esteve detida 11 meses, a aguardar julgamento até que foi libertada sem nunca ter sido julgada. Finalmente, a 8 de abril de 1980, em pleno Governo AD, foram julgados três soldados no Tribunal Militar de Santa Clara: Paulino Rodrigues, Firmino Duarte e Manuel Santos. A sentença foi anunciada a 1 de agosto desse ano, condenando os dois primeiros a dez anos de prisão, enquanto Manuel Santos, defendido pelo advogado Agostinho Miranda - então a estrear-se nos tribunais -, teve uma pena de dois anos e meio: “Lembro-me da presença de Vera Lagoa, na assistência, ser uma espécie de pressão política”, recordou o causídico.

Mas, ainda antes de o ano acabar, em dezembro, logo após a morte de Sá Carneiro em Camarate, a sentença foi anulada pelo Supremo Tribunal Militar. Um novo processo teve início em maio de 1981, apenas para, pouco depois, ser suspenso. Seria apenas, em novembro de 1984, que haveria segunda sentença, onde as penas dos dois soldados desceram de dez para seis anos, confirmando-se os dois anos e meio para o terceiro.

Ângelo Fialho, filho de Antónia e irmão de António, contou que “tanto quanto saiba, os soldados só estiverem presos enquanto durou o julgamento”. O processo consumiu a vida da mãe até à morte, em 2005. “Nunca recebeu uma indemnização pelo assassinato do meu irmão”, desabafa Ângelo.

Hoje, um dos netos de “Antónia, Antónia” chama-se Bruno Fialho, sobrinho da vítima e, atualmente, presidente do partido ADN. E quando lhe perguntámos até que ponto a luta da avó o levou a dedicar-se à política, responde-nos: “Crescer ao lado da minha avó Antónia e seguir o seu exemplo de força e coragem moldou a minha visão de mundo e a minha luta pela defesa dos direitos dos outros.”

Jornalista e escritor

Foi há 50 anos: “Antónia, Antónia, onde estão os assassinos do teu filho?”
11 de Março: o dia de todas as “tensões” que só se resolveu a 25 de Novembro
Diário de Notícias
www.dn.pt