Vivemos tempos em que a realidade teima em rivalizar com a ficção. Se alguém nos tivesse dito que o preço de apresentar uma queixa na polícia era de 23 euros por página, para obter a cópia do relatório policial, poucas pessoas acreditavam e até se riam da piada, mas eis a nossa burocracia, sempre cheia de surpresas e raramente agradáveis..Tudo começou numa caixa de supermercado, ao presenciarmos a pergunta da empregada a um polícia sobre o custo de um relatório policial. Não quisemos acreditar na resposta e fomos confirmar na tabela de preços da PSP: “Emissão de certidões, declarações ou fotocópias (por lauda) - 23 euros.”.Imagine-se alguém vítima de um crime, sentado na esquadra, a relatar tudo com o máximo de detalhe. Entre a descrição do meliante e a hora do sucedido, surge uma nova preocupação: Quantas páginas precisará? Mais duas folhas e a queixa pode sair tão cara quanto um jantar em família!.Neste estranho jogo, o peso das palavras transforma-se num verdadeiro imposto narrativo, onde o preço do acesso à Justiça se mede em número de páginas, cuja impressão num centro de cópias custa no máximo 15 cêntimos..O governo eletrónico e os vários Simplex prometem-nos a esperança de simplificar serviços, tornar tudo mais eficiente e acessível, mas a realidade dos pequenos poderes surpreende-nos todos os dias, sobretudo em situações em que nos sentimos mais frágeis e desprotegidos..A tecnologia já está ao nosso alcance, pois os sistemas de reconhecimento de voz e Inteligência Artificial já conseguem transcrever conversas longas de forma precisa. Imaginemos relatar um crime a um assistente virtual, que regista no processo judicial e nos devolve automaticamente a queixa para o nosso e-mail, sem custos adicionais. Parece ficção científica, mas é uma realidade tecnicamente viável com custos próximos de zero..Contudo, a implementação destes avanços esbarra em desafios clássicos, como os pequenos poderes burocráticos, a legislação obsoleta e uma resistência a abandonar velhos métodos, como a cobrança de receitas escondidas para compensar dificuldades orçamentais..Se a tecnologia pode simplificar e beneficiar a nossa vida, por que não a usamos para nos libertar da era do papel e acabar com estes custos desnecessários? É um misto de interesses financeiros, inércia governamental e incapacidade de dar prioridade ao cidadão..Será que um dia pagaremos zero euros por uma queixa digital bem elaborada em tempo real, registada num sistema inteligente que entende as nossas palavras e sentimentos? Acreditamos que sim, mas até lá, resta-nos contar os carateres e rezar para que a nossa história caiba numa só página..Afinal, o direito à Justiça não devia ser medido em carateres, páginas ou euros, mas sim na sua acessibilidade e eficácia para todos.