Extremistas como eu e José Ornelas
Este sábado, na manifestação “Não nos encostem à parede”, para além de encontrar amigas e amigos, cruzei-me com pessoas que não via há muito. Por exemplo Teresa de Sousa, jornalista e colunista do Público que conheci quando estagiária do Expresso, há cerca de dois milénios, e que não encontrava em carne e osso seguramente há uns 20 anos, e José Vitor Malheiros, outro jornalista que conheci no Expresso dos meus primórdios jornalísticos. Avistei Álvaro Vasconcelos, fundador do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, opositor do Estado Novo que viveu no exílio de 1967 a 1974 e cujas análises sobre política internacional leio sempre com proveito, e abracei João Jaime Pires, professor do ensino secundário nascido na terra da minha mãe - Alhandra - que dirigiu nos últimos 15 anos o Liceu Camões, até se reformar, em outubro, e a quem recorri muitas vezes quando precisava de “entrevistar putos” sobre isto ou aquilo.
Vi muitos cabelos brancos, muita gente grisalha. Vi um ex-presidente da Assembleia da República, Eduardo Ferro Rodrigues, com a mulher, Filomena de Aguilar, e os dois filhos, João e Rita (a minha muito amiga Rita, com quem tinha combinado encontrar-me junto ao Café Império). Vi outras duas amigas, as deputadas socialistas Isabel Moreira e Edite Estrela, esta ex-vice presidente da AR e, ao longe, o sociólogo especialista no estudo da violência doméstica Manuel Lisboa. Também vi outra socióloga, Elza Pais, que conheci nessa valência antes de a saber militante socialista, e a jurista e ex-secretária de Estado da Educação e ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública Alexandra Leitão. Vi o ex-ministro das Finanças e ex-presidente da Câmara de Lisboa Fernando Medina, de mão dada com a mulher, Stéphanie Silva; a ex-eurodeputada Margarida Marques e o deputado socialista Eurico Brilhante Dias.
Atravessei a manifestação quando divisei, ao longe, a minha camarada do Expresso Ana França, que só conhecia do Twitter e de a ler, e com quem estive a falar da sua reportagem na Síria e no receio que ambas temos de que a esperança morra ali como morreu, tragicamente, nas primaveras árabes, e esbarrei no Filipe Santa Bárbara, da TSF, que me anunciou o resultado da sondagem JN/TSF que iria ser noticiada mais tarde, e na qual mais de 60% dos inquiridos diziam ter achado bem (ou não achado mal) a ação policial na Rua do Benformoso que deu origem à manifestação.
Vi o meu amigo Rui Tavares, deputado do Livre, com a filha Helena às cavalitas, as minhas amigas Joana e Mariana Mortágua, deputadas do Bloco de Esquerda, e a minha amiga Maria João Pires (não, não é a pianista), que conheci através dos blogues nos idos de 2006, com o filho, Tomás, que vi crescer desde os sete anos até aos atuais dois metros e qualquer coisa. Abracei a empresária e ativista pelos direitos humanos Miriam Taylor, abracei a minha amiga Maria Escaja, a quem, naquilo a que em inglês se dá o nome de running joke, chamo filha e que me chama mãe, e o João Maria Jonet, a quem (idem) chamo sobrinho e me chama tia. Desci a avenida com as minhas amigas Fernanda Fragateiro e Felipa Mourato para me encontrar, já no Martim Moniz, com a minha amiga Adriana Freire; desencontrei-me do meu amigo Pedro Marques Lopes e de muitas outras pessoas que ali estiveram, porque éramos mesmo muitos. Não sei quantos milhares, mas muitos milhares.
Foi, confesso, uma surpresa: não esperava tanta gente; não esperava demorar três horas em passo lento a descer a Almirante Reis; não esperava um tão expressivo levantamento contra a ideia de discriminação e humilhação consubstanciada na imagem de dezenas de pessoas imobilizadas, por ordens de agentes da PSP de capacete, armadura e shotgun, na Rua do Benformoso de mãos na parede e pernas afastadas apenas por estarem ali e por terem uma cor e uma origem geográfica diversa daquela que é a ideia (tanto a dizer sobre isso) de “um português”.
Não esperava tanta gente a erguer-se contra a ideia de que há pessoas que podem ser tratadas com desprezo, com falta de respeito, exibidas assim, como símbolos de um “outro” que deve ser vigiado, reprimido, oprimido, como quem “não pertence”, como quem está sempre por favor, em perpétua insegurança. (Porque é isso que vemos ali: a imposição de um sentimento de insegurança constante àquelas pessoas, em penhor do alegado sentimento de insegurança “dos portugueses”, que precisariam de ser assim sossegados, de ficar assim cientes de que o Estado, através do seu braço armado, a polícia, está sempre de olho naqueles “corpos estranhos”).
Não esperava que a violência simbólica daquela imagem chocasse e indignasse tanto tanta gente, nem que o presidente da Conferência Episcopal, José Ornelas - representante de uma Igreja Católica que já se deveria ter feito ouvir sobre o assunto - juntasse a sua à nossa voz dizendo, sobre a manif, que “significa uma ação bonita de dizer que ‘nós não nos resignamos’” e que “às vezes, a indignação significa dignidade e significa projeto e significa sede de um mundo melhor”. E ainda: “Não podemos ficar, simplesmente, parados e que também a Igreja não pode ficar.”
Sede de um mundo melhor. Às vezes a indignação significa dignidade. Não podemos ficar parados. Tantas coisas certas, tão apropriadas e comoventes, tão em choque com a reação de um primeiro-ministro que crismou como “extremo” aquilo que o bispo Ornelas viu como um anseio de dignidade e bem, um gesto de amor. Um primeiro-ministro que ao proclamar que no sábado “os extremos tinham saído à rua, um contra o outro” (referindo-se à manifestação na Almirante Reis e à “vigília” que o partido de André Ventura convocou para a Praça da Figueira), equiparou o anseio tão bem descrito pelo bispo àquilo que ainda há meses, na campanha para as legislativas, ele próprio definia, cara a cara com o líder da extrema-direita, como “opiniões racistas, xenófobas e demagógicas”
Para Luís Montenegro, então, uma manifestação na qual desfilaram políticos que viabilizaram o orçamento da sua AD, políticos que integraram um governo que lhe legou um excedente orçamental que lhe está a dar um jeitão, é “extremista”; defender o Estado de direito e criticar ações policiais por considerá-las ostensivamente discriminatórias é o mesmo que dizer que “a polícia devia matar mais”. Querer um mundo melhor e um mundo pior; ser “racista, xenófobo e demagógico” e ser o contrário. Para Luís Montenegro, percebe-se, é tudo igual.