Europeus de todo o mundo, uni-vos

Este sábado, dezenas de milhares de italianos saíram à rua em defesa da Europa. É tempo: se soubemos gritar e fazer peito contra o Daesh e a Al Qaeda, chegou a hora de enfrentar os impérios.
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Perdoem que comece com uma reminiscência. Em 1993 ou 1994 (ou teria sido em 1995, nos 50 anos do fim da Segunda Guerra?) estive na Polónia, numa daquelas viagens de jornalistas a convite de  uma organização – nem me lembro já qual. O tema era a proposta de adesão à NATO, e houve vários encontros com autoridades polacas e também com representantes da aliança.

Não era a minha primeira viagem à Mitteleuropa mas foi ali, naquele país pisoteado pelas grandes guerras, disputado pelos impérios, sulcado de tragédias, que me senti verdadeiramente no centro fustigado do continente. Foi ali, na praça central de Cracóvia, que repeti, como oração ou feitiço, a frase do sueco Stig Dargerman sobre o seu amor desesperado pela juventude europeia, que me levara às lágrimas quando a li em A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. Porque foi ali que percebi, como em êxtase místico, o quanto amava a Europa e o quanto esse amor e pertença se radicavam na melancolia, na tristeza e na culpa que advêm das guerras perdidas, dos pavores sofridos e infligidos, do estendal de ideologias e impérios esfarrapados, das humilhações e das lições aprendidas, mas também (et pour cause) na ideia da paz e da democracia, da união de países - de povos - que recusam repetir os horrores da sua história.  

Foi ali que, mais que nos livros ou nos filmes, até porque naquela altura a Rússia não era a Rússia de agora –  bem pelo contrário, a URSS acabara de se desmembrar –, percebi, quando o vi nos olhos dos militares e na forma como diziam “os russos”, o ódio, feito de medo e de ressentimento, que os polacos têm ao seu grande vizinho imperial, e a necessidade que tinham da proteção de uma aliança militar.  

Foi também ali que, num encontro com três oficiais da NATO, um nórdico (dinamarquês? norueguês?), um britânico e um americano, tive uma revelação: a de que os europeus e os americanos eram como que espécies irreconciliavelmente diferentes, e que havia grandes probabilidades de aquela convivência, ou seja aquela aliança, vir a dar para o torto. Que aquilo que nos era mais admirável nos EUA, tão bem descrito pelo filósofo francês Jean Baudrillard em Amerique – a velocidade em oposição à contemplação, a ação em detrimento da reflexão, o cinema em vez da literatura, a violência em vez da angústia, o poder em vez da melancolia – se podia transformar um dia no puro obsceno da lei do mais forte; que podia ser um dia também para os europeus o terror que fora para outros. Até porque, claro, a forma como os europeus, ou a maioria dos europeus, confiavam nos americanos para fazer grande parte da despesa na proteção da Europa tinha tudo para dar errado.

Tenho, nos últimos tempos, pensado nessa viagem de há mais de três décadas, e de como – usando as palavras de Álvaro Vasconcelos este domingo no Público –, no seu “culto da ação pela ação” e da virilidade obscurantista,  na “vertigem do poder absoluto”,  no “desprezo pelos mais fracos, pelos Direitos Humanos e a ordem internacional”,  como pelo “viva la muerte” que é o hino trepidante de todos os fascismos, Trump é um corolário da lógica brutalista americana, um mais que anunciado cavaleiro do apocalipse.

Daí que seja tão difícil perceber por que motivo uma manifestação como a que este sábado teve lugar em Roma, e que de acordo com o noticiado juntou, com o apoio das três maiores confederações sindicais italianas, dezenas de milhar de pessoas pela unidade da União Europeia, pela paz e pela democracia – logo, contra os imperialismos autocráticos em presença –, teve tão pouco foco mediático.

“A Europa não é um conceito abstrato, é a salvação”, disse à multidão o jornalista e escritor Michele Serra, cujo apelo "Digam alguma coisa de europeu" no diário La Repubblica, a 22 de fevereiro, deu origem à manifestação. Também neste sábado, no El País, o escritor espanhol Javier Cercas seguiu-lhe o exemplo, exortando todos os europeus a sair à rua: “O único problema desta manifestação é ser só italiana. Deveria ser europeia: deveria ser descomunal e ocorrer em todas as capitais da Europa”, E num texto magnífico, intitulado “A nossa pátria é a Europa”, explica porquê.

“A Europa unida é a única utopia que inventámos como europeus. Utopias atrozes – paraísos teóricos convertidos em infernos reais – inventámos umas quantas; já utopias razoáveis só esta”, diz Cercas. “E é a Europa unida – um projeto político inédito na história, verdadeiramente revolucionário, o grande projeto político do século XXI – o que está em perigo agora. (…) Necessitamos de uma manifestação descomunal, que diga alto e claramente ao mundo que, ainda que a Europa esteja ameaçada, não se renderá, não nos renderemos. Que estamos juntos nisto. Que a nossa democracia nos é importante. Que nos importam as nossas liberdades. Que não vamos entregar o mundo a um par de gangsters [Trump e Putin].”

Cercas diz que odeia manifestações e multidões e que nas últimas décadas só foi a uma, aquela que teve lugar em Madrid após os ataques terroristas de 11 de março de 2004, mas estará nesta. É curioso, porque, precisamente, foi da manif Je suis Charlie, de 12 de janeiro de 2015, em Paris (e em toda a França e Europa), que me lembrei ao lê-lo – e de como ante a ameaça do terrorismo islâmico a defesa da democracia, das liberdades e da segurança foi tão evidente e tão agregadora, pondo milhões de pessoas na rua e juntando os chefes de Estado da Europa.
Custa assim tanto perceber que a ameaça que enfrentamos hoje é muitas vezes maior e mais perigosa que um Daesh ou uma Al Qaeda? De que estamos à espera?

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