Estranho mesmo é não fugir mais gente

O problema maior e mais indesculpável das prisões portuguesas não é não conseguirem manter presos os presos, porque nisso até funcionam - a taxa de fuga é baixa. É serem um sistema de degradação, opacidade e esquecimento. Um lugar onde fechamos pessoas como se não fossem pessoas - e não devessem voltar.
Publicado a
Atualizado a

"É grave e não pode voltar a acontecer”. A frase é do ministro das Infra-estruturas, Miguel Pinto Luz, repetida depois pela ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, na severa alocução desta terça-feira.

A declaração é normal: que há-de dizer um governo ante uma evasão que, pelas circunstâncias em que ocorreu – à luz do dia, com toda a calma, sem mais meios que escadas e alicates para cortar rede e à vista das câmaras de vigilância – humilha o sistema prisional a ponto de as autoridades, e alguns “especialistas”, elogiarem, como quem se desculpa, o profissionalismo e sofisticação de quem preparou o acontecimento? Que não podia ter acontecido e que não poderá voltar a acontecer. Mas não é só nos filmes que se dão fugas espetaculares (e rocambolescas) de prisões: todos os sistemas prisionais, inclusive os mais modernos, as sofrem.

E essas evasões não sucedem sobretudo ou apenas nos sistemas que, como os dos países nórdicos, se caracterizam por serem “abertos” (só os condenados considerados perigosos estão realmente presos; os outros vivem nas prisões mas saem para trabalhar), e que tendem a ter taxas de fuga relativamente altas. É olhar para os relatórios do Conselho da Europa sobre prisões. No último, na página 113, encontramos a taxa de evasão e o número de evadidos nos vários países da Europa durante o ano de 2022, para constatar que, sendo a média de 32 evasões por 10 mil reclusos, por exemplo França acusou, nesse ano, uma taxa de 122,7 por 10 mil, correspondente à fuga de 887 presos. Desses, 88,7% fugiram de instituições fechadas. Em 2021, tinham sido 734 os evadidos (taxa de fuga de 105) nesse país.

E não é porque o rácio de reclusos/guardas prisionais do sistema francês seja muito alto: é de 3,9, não muito superior ao de Portugal (3,1). E não é que o valor que França gasta por recluso/dia (e que inclui todos os gastos correntes, incluindo com pessoal) seja baixo: trata-se de 127,14 euros, um pouco abaixo da média europeia (131 euros) e mais do dobro dos míseros 56,33 euros portugueses. Não, há-de ser por outras razões que fogem tantos reclusos em França. Como há-de ser por razões outras que Portugal, há décadas a ignorar resolutamente as prisões e a investir nelas o menos possível, tem apesar de tudo tão poucas evasões.

Sim, poucas: em 2022 evadiram-se oito presos, dos quais dois, segundo as notas do relatório europeu, estavam em regime aberto (não saltaram o muro). A taxa foi assim de 6,5 por 10 mil, e não se trata de uma exceção: de acordo com o constante no relatório de atividades de 2022 da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, a média de fuga nos nove anos anteriores foi de 7,6 reclusos/ano.

Não se pode pois gritar, porque cinco homens se evadiram, que há um “problema de segurança”, do ponto de vista da incapacidade de contenção dos reclusos, no sistema prisional português. Até porque o que aconteceu em Vale de Judeus está ainda em investigação, e se à partida parece ter havido, como disse a ministra da tutela, “uma cadeia sucessiva de erros e falhas graves”, está por se perceber se foram mesmo erros.

Já decerto erro e falha grave, inaceitável e grosseira, é a indiferença a que a sociedade portuguesa – incluindo a parte dela que tanto se mobiliza por acontecimentos internacionais relacionados com direitos humanos – vota a situação escabrosa em que vive a maior parte dos reclusos. Uma indiferença na qual não cabem apenas os governos – porque ninguém, por mais condenações pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que nos caibam, quer saber o que se passa nas prisões e, sobretudo, gastar nelas dinheiro ou empatia.

Por mais que se repita que Portugal, malgrado ser considerado um dos países mais seguros do mundo, está sistematicamente entre os estados europeus nos quais os reclusos passam mais tempo presos – em 2022, com 28 meses (dois anos e três meses) de média, foi o campeão – , ninguém liga.

Ninguém liga quando ano após ano se verifica que uma parte considerável das pessoas encarceradas – 9% em 2022 – o estão por crimes rodoviários como conduzir sem carta, manobras perigosas ou condução sob influência do álcool ou estupefacientes, ou seja, os chamados “crimes de perigo abstrato”, pelos quais se é condenado não pelo mal que se fez a alguém, mas pelo que se poderia ter feito.

Ninguém liga quando, ano após ano, cerca de 20% dos reclusos o são por crimes ligados às chamadas drogas (também de perigo abstrato) a que correspondem, por via de uma legislação anacrónica, com mais de 30 anos,  penas muito mais severas que as aplicadas aos condenados por crimes violentos – ou seja, quem agrediu,  violou,  roubou ou, até, matou.

É verdade que por duas vezes neste século houve, com governos socialistas, planos de reestruturação do sistema prisional, com desativação de penitenciárias e construção de novos estabelecimentos, modernos e humanos. Mas, das duas vezes, os planos caíram: primeiro devido à crise financeira de 2007/2008 e subsequente crise do euro, depois devido à pandemia e à crise inflacionária. Mas não vimos ninguém a protestar por isso – decerto não houve, no parlamento, declarações indignadas da oposição por mais uma vez se desistir de trazer para o século XXI um sistema decrépito, onde se paga dois euros por dia aos reclusos que trabalham e a maioria fica o dia todo metida na cela a ver TV, à espera de que o tempo, e a vida, passem.

Não é de esperar que isso mude com este Governo, que no seu programa tem poucas e pobres linhas sobre o assunto (e nenhuma sobre necessidade de reforçar a segurança). Fala de “revisão e valorização das carreiras profissionais dos Guardas Prisionais”, de “promover políticas de reforço da formação profissional e da recuperação da formação escolar dos reclusos”, de “redimensionar a rede de Estabelecimentos Prisionais” e “as equipas de reinserção social” e “promover a diferenciação e individualização da intervenção dos Estabelecimentos Prisionais”. Nada sobre sobre a necessidade de construir novas prisões. Só uma linha (que se saúda) sobre prender menos: “Reforçar a prestação de trabalho a favor da comunidade como alternativa à reclusão”.

Eram belas ideias, mas sete anos depois do relatório Van Dunem estamos aqui – nas penitenciárias onde ainda este ano a Provedoria encontrou infestações de baratas, pulgas e ratos, mais humidade e mau cheiro, pessoas amontoadas em camaratas e vídeos – inclusive em Vale de Judeus – de guardas a agredir reclusos, mais pessoal prisional que dizia desconhecer ser seu dever reportar essas agressões. Se calhar estranho mesmo é não fugir mais gente.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt