Estamos a gravar: favor verificar o vosso ego à entrada
De frente para televisão, o momento ia-se repetindo, sem sombra de saturação. Pelo contrário, quanto mais víamos e ouvíamos, mais queríamos ver e ouvir. Foi assim que, sem nos apercebermos, eu e as minhas irmãs nos juntámos ao movimento político mais poderoso que conheço: o da mobilização colectiva por Justiça Social.
Fizemo-lo despreocupadamente, entre brincadeiras de infância, sob a condução de um pai-feito-maestro, e o ritmo do coro mais entoado daqueles tempos: “We are the World. We are the children”, ou, na tradução para o português, “Nós somos o mundo. Nós somos as crianças”.
Enquanto desafinávamos, imitávamos os esgares das estrelas no vídeo, e inventávamos palavras que soavam a inglês, a fome cobria de morte a Etiópia, tragédia que motivou a criação desse refrão, lançado em 1985.
Na altura, estava já horrorizada com as imagens de crianças etíopes severamente subnutridas, e pareceu-me natural ver tantas vozes unidas numa campanha solidária.
Como que movidas por um incontornável dever de humanidade.
Hoje revisito esses sentimentos à boleia do documentário A Grande Noite da Pop, que apresenta, de forma inédita, os bastidores dessa actuação.
Voz-guia ao longo da produção, o músico Lionel Richie conta-nos como o lendário militante pelos direitos civis, Harry Belafonte, o desafiou: “Vemos pessoas brancas a salvar pessoas negras, mas não vemos pessoas negras a fazê-lo. Temos de salvar o nosso povo da fome.”
O repto, parafraseado por Lionel, traduzia o empenho do músico e actor em aproximar a geração mais nova de artistas afro-americanos da realidade africana.
A inspiração, ficamos a saber no documentário, é indissociável do single Do They Know It’s Christmas?, gravado em 1984 por estrelas da música britânica e escocesa, reunidas no grupo Band Aid.
Entre as notas de uma e outra composição, encontramos uma resposta à tragédia etíope, à época, mediatizada e globalizada a partir de uma reportagem emitida pela BBC.
Mas, acima de tudo, vejo n’ A Grande Noite da Pop uma enorme demonstração da nossa força política. Individual e colectiva.
Para quem conhece o tema We are the World, e a constelação de mais de 40 estrelas que lhe deram vida - a começar por Lionel Ritchie e Michael Jackson, parceiros na composição -, é impressionante perceber que tudo aconteceu na base do “passa a palavra” e “vamos ver quem aparece”.
Não menos admirável é acompanhar como se geriram as tensões e frustrações ao longo de uma noite e madrugada de gravações, realizada em Los Angeles sob a batuta do inimitável Quincy Jones.
Tão genial quanto providencial, o produtor dos produtores afixou, à porta do estúdio, o aviso “Check your ego at the door”, traduzível para “Verifiquem o vosso ego à entrada”.
É verdade que nem por isso os egos ficaram de fora, mas acredito que a simples recomendação produz alguns efeitos de auto-regulação, visivelmente em défice nos estúdios de TV que, até dia ao próximo dia 23, recebem os debates para as legislativas, férteis na criação de moderadores-contendedores.
Mas deixo essa conversa para outro momento, e fixo-me n’ A Grande Noite da Pop.
À medida que percorro as imagens por detrás do projecto que angariou milhões de dólares para combater a fome na Etiópia, penso no mundo que somos, agora pouco compatível com a minha velha e ingénua crença num incontornável dever de humanidade.
Questiono-me se as novas gerações de músicos, educadas numa era de tragédias transmitidas ao minuto e em directo, seriam capazes de se mobilizar massiva e globalmente, e sem qualquer retorno financeiro, pela(s) mesma(s) causa(s).
Escrevo músicos porque está neles o foco d’ A Grande Noite da Pop, mas estou a falar de todos nós. O tal mundo e as crianças que somos.
Se em meados dos Anos 80, a catástrofe etíope ainda era capaz de suscitar comoção generalizada - activando o tal dever de humanidade para a acção -, desconfio que no novo quotidiano, povoado de redes sociais e múltiplos canais de notícias com transmissão ininterrupta, pudesse desmerecer actualidade.
Diante da avalanche de informação, desinformação e dessensibilização que nos atravessa, o que antes era indiscutível, à luz de valores humanos, torna-se cada vez mais discutível, à luz de publicações, reacções e comentários online.
Como se as normas humanitárias fossem descartáveis em função das circunstâncias, entendimento para o qual o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, alertava, no final do ano passado, a propósito do genocídio na Palestina.
“O Direito Humanitário Internacional estabelece regras claras que não podem ser ignoradas. Não é um menu à la carte, e não pode ser aplicado selectivamente”, destacou o líder da ONU.
O aviso continua, contudo, a cair em saco-roto: os ataques israelitas em Gaza persistem, e, segundo as autoridades locais, já totalizam acima de 28 mil mortes, incluindo mais de 11.500 menores de 18 anos.
O grupo Euro-Mediterranean Human Rights Monitor acrescenta outro dado ao balanço do genocídio: 24.000 crianças perderam um ou ambos os pais.
A cada vida subtraída e trauma somado, fica evidente que, no mundo em que estamos, “Não somos estas crianças”. Mas temos o dever de ser.
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