Entre vontade de viver e vã glória
Para quem contemple a vertigem bélica que percorre o mundo, com toda a sua pletórica e nua crueldade, milhares de milhões de vidas arriscam-se na tensão entre duas formas de vontade, identificadas desde a aurora da modernidade: a “vontade de conquistar” (Maquiavel) e a “vontade de viver” (Hobbes). As armas nucleares criaram um clube de países com um poder de destruição inédito na história. A partir do momento em que deixa de existir o monopólio dessa arma, esse poder deve ser obrigatoriamente acompanhado de maior responsabilidade, pois um confronto entre potências nucleares, levado aos limites, implicaria o absurdo de uma guerra só com derrotados: uma destruição mútua assegurada” (MAD) dos contendores, e possivelmente da maioria da espécie humana. Se acreditarmos num mínimo de racionalidade humana, a vontade de sobreviver deve sobrepor-se à vontade de vencer. A responsabilidade das potências nucleares também se afere nos conflitos com potências não nucleares. Estas poderiam ser facilmente derrotadas pelas primeiras, mas os danos de reputação causados pelo uso dessas armas poderiam trazer mais prejuízos do que benefícios. Foi por isso que os EUA aceitaram uma quase derrota na Coreia (1953), uma completa derrota no Vietname, tal como a URSS retirou, humilhada, do Afeganistão (1989).
A derrota sofrida pela Rússia – no fulminante colapso do governo sírio de Assad patrocinado e aclamado pelo Ocidente –, saindo de cena depois de uma coligação (cujos membros já começaram a lutar entre si pelos despojos de mais um Estado moribundo), ilustra, paradoxalmente, o modo como Moscovo não se esqueceu dos princípios clássicos de Sun Tzu e Clausewitz: evitar a dispersão, concentrando forças no objetivo central. A Rússia parece até pronta a retirar-se das duas importantes bases militares que (ainda) tem na Síria. Com isso foca-se no seu objetivo estratégico central: a Ucrânia. Contudo, para os atuais dirigentes da OTAN, de fraca leitura e forte autismo, a prudência de Moscovo na Síria é lida como um sinal de fraqueza, que os encoraja a aumentar a parada no apoio a Kiev. Para a Rússia, como tem sido repetido pela sua liderança, uma derrota na Ucrânia seria existencial, igual à sua morte como Estado. Considerar que a determinação russa na sua doutrina nuclear não passaria de um bluff, como insistem tantos dirigentes da UE e da OTAN, significa sabotar a força da dissuasão na prevenção de uma guerra total. Envolver forças da OTAN diretamente no campo de batalha, recusando a inevitabilidade da via diplomática, seria o último erro do Ocidente e o maior crime contra o futuro cometido pela frivolidade humana.